domingo, 29 de maio de 2011

Forais - Antes da Reforma Manuelina

Antecedentes da Reforma Manuelina dos Forais

A partir do século XI a promulgação de forais foi contínua, sempre em crescendo até ao reinado de D. Dinis, período no qual este fenómeno afrouxou, ocorrendo em número diminuto a publicação destes diplomas no século XIV[1].
Para a compreensão do abrandamento da concessão destes diplomas é necessário compreender as profundas mudanças ocorridas durante o século XIV no mundo ocidental. Este é o século do aparecimento da Peste Negra, mortandade que eliminou um terço da população da cristandade, desprovendo os campos de grande parte de mão-de-obra, aumentando exponencialmente os salários dos sobreviventes e o preço dos alimentos; neste período desenvolvem-se também as rotas comerciais marítimas, resultantes da ascensão de uma burguesia activa e diligente; aumentou-sedo número de mesteirais, suscitado pelo afluxo de pessoas às urbes; e deu-se o crescimento exponencial de praticas marginais[2].

Neste clima de mudança, os reis portugueses tiveram mais liberdade para implementaram uma série de medidas importantes fulcrais para o reforço da centralização régia. Entre elas incluem-se: o aumento na promulgação de leis gerais do reino, a criação de meirinhos, mais tarde designados por corregedores, por D. Afonso III, e de juízes de fora, por D. Afonso IV, ambos magistrados régios colocados nos concelhos, e a apropriação do monarca da sisa dos municípios[3]. Paralelamente a este processo, decorreu também a complexificação e especialização da administração local. Surgiram novos magistrados nos concelhos, os vereadores, para responder à evolução burocrática do governo do reino, que em conjunto com os outros representantes locais eram escolhidos de entre “um patriciado, burguês e terratenente”, que incluía também nobres e a burguesia letrada[4]. Na escolha destes funcionários intervieram, sempre que possível, os reis e os grandes senhores, laicos e eclesiásticos, procurando assim aumentar o seu controlo sobre o poder concelhio[5].

Mediante as transformações económicas, sociais e políticas deste período, os concelhos iam perdendo progressivamente a sua autonomia jurídica, administrativa e financeira, tornando o conteúdo dos forais, em muitos casos, inútil e perigosamente desajustado da realidade dos séculos XIV e XV. Estes diplomas, redigidos então a dois ou três séculos, empregavam em muitos casos uma linguagem considerada “incompreensível e obsoleta”, o latim[6]; indicavam tributações, moedas, pesos e medidas já desactualizadas com a passagem do tempo e com as diferentes cunhagens e desvalorizações do dinheiro[7]; e algumas destas cartas encontravam-se deterioradas, em muito mau estado para serem consultadas, havendo casos de interpretações intencionalmente incorrectas e de falsificações pelo poder senhorial[8].
Não é deste modo de estranhar que se gerassem várias querelas entre os concelhos e os poderes senhoriais[9], que acabavam decididas pelo poder régio, e consequentemente se verificassem apelos em cortes para a reforma dos forais como solução para os abusos da nobreza. O primeiro desses pedidos registou-se no 106º artigo das cortes de 1472-73, durante o reinado de D. Afonso V, em que os procuradores dos concelhos clamavam ao rei que “seja vossa mercê reformardes (...) e examinardes, e exterpardes todas as bulrras, e enganos de taees Foraees”, mandando recolher “todos os Foraees de vosso Reinno, que huum não fique”, e ordenando que “o Procurador do Senhor dessa Terra, e das vosas, o Procurador dos vosos Feitos, e assi o Procurador do Conselho (...) examine esse Foral velho com o proprio da Torre, e os usos, e costumes, que não per erro, nem per posse, e poderio se costumou de longuos tempos, (...) se cumpra di avante, e tenha por Forall, e os outros costumes errados, e falsuras sejão anuladas, e anicheladas[10]. Perante este pedido o monarca replica positivamente, delegando ao juiz dos seus feitos a supervisão deste empresa. Esta reestruturação dos forais acabaria por não se suceder devido à concentração de esforços deste monarca na guerra luso-castelhana de 1475-1479[11].

D. João II, antecipando queixas semelhantes às do reinado anterior, que seriam apresentadas nas cortes de 1481-82, decide numa carta régia, de 15 de Dezembro de 1481, mandar recolher todos as cartas de foral para consulta e confirmação pelo Juiz dos Feitos durante um ano, exigindo também às povoações que não possuíssem foral a exibição de um documento que legitimasse a cobrança de portagem e costumagem, os principais geradoras de protestos dos concelhos em cortes[12]. À semelhança do seu antecessor, o Príncipe Perfeito não conseguiu completar o seu projecto, ficando este estagnado na fase inicial de recolha dos diplomas[13].


[1] Cf. Carlos Margaça Veiga, “A Reforma Manuelina dos Forais”, in O Foral da Ericeira no Arquivo-Museu sob a coordenação de Margarida Garcez Ventura, Lisboa, Edições Colibri, 1993, p.35. Em consequência da proliferação deste diploma, no fim da Idade Média todo o reino de Portugal encontrava-se dividido em circunscrições concelhias bem definidas.
[2] Cf. Idem, ibidem, p.35.
[3] Cf. Idem, ibidem, pp.35-38.
[4] Cf. Idem, ibidem, pp.43-44.
[5] Cf. Idem, ibidem, p.41.
[6] Cf. Francisco Ribeiro da Silva, ob.cit., p.227.
[7] Cf. Carlos Margaça Veiga, ob.cit., p.44. Como é patente nesta citação do Foral Novo de Lisboa: “os nomes das moedas e intrinseco valor dellas se nom conheciam” (Carlos Margaça Veiga, ob.cit., p.44, nota 29).
[8] Cf. Foral de Alhos Vedros - Estudo, transcrição paleográfica e notas de Maria Clara Santos e José Manuel Vargas, 1º Edição, [s.l.], Câmara Municipal da Moita, 2000, p.9. Queixavam-se, nas cortes de 1472-73, os procuradores dos concelhos ao rei que os forais eram “oje em dia, e assim todos ou a moor parte, falseficados, antrelinhados, rotos, não autorisados, e os tirão do seu próprio entender” (Francisco Ribeira da Silva, ob.cit., p.228).
[9] Escolhemos como exemplo desta situação apenas um caso entre muitos, ocorrido nas cortes de Santarém de 1430, em que se acusavam os fidalgos de colocaram “em as ditas terras tributos, e costumes novos, que nunca forão per vos (rei) outorgados, nem per outros nenhuns levados” (Foral de Alhos Vedros, ob.cit., pp.9-10).
[10] Cf. Foral de Alhos Vedros, ob.cit., p.11.
[11] Cf. Carlos Margaça Veiga, ob.cit., p.47.
[12] Cf. Francisco Ribeiro da Silva, ob.cit., p.229.
[13] Cf. Carlos Margaça Veiga, ob.cit., p.47.

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