sábado, 30 de abril de 2011

E o tempo passa ...

 
Só para matar o tempo 
Envolvo a vida em mistério
Mas nunca me levou muito a sério.
Até de mim chego a rir,
Eu sei lá o que é que faço,
Riso de agonia de um palhaço

Passar o tempo a tentar
Matar o tempo que corre
É tudo tempo perdido, 
Que o tempo nunca morre

Só para matar o tempo, 
Tento-me até convencer
Das coisas que digo por dizer.
Faço Vénias ao bom senso
Em disparates sem fim,
Para matar o tempo
Até me mato a mim.

Passar o tempo a tentar
Matar o tempo que corre
É tudo tempo perdido, 
Que o tempo nunca morre
V


Augustus (Parte II)


A Sucessão Inglesa

João Sem Terra, o filho mais novo de Henrique II, senhor de todas as posses plantagenetas em França, exceptuando a Bretanha e a Aquitânia, é, então, regente de Inglaterra. Nestas circunstâncias, em 1193 João faz uma coligação com o rei francês, tornando-se seu vassalo, pretendendo o apoio de Filipe na luta pelo trono inglês.

No regresso a Inglaterra, Ricardo I é preso por Leopoldo da Áustria e entregue ao senhor deste, o Imperador Henrique VI, que o solta depois do pagamento de resgate, por Leonor da Aquitânia, e da homenagem vassálica do prisioneiro prestada ao Imperador.
O regresso de Ricardo aos seus domínios, provoca um conflito entre o legítimo monarca inglês e João, que é aproveitado por Filipe II para atacar os territórios continentais ingleses. O consequente acordo, de 1194, firmado entre João Sem Terra e Filipe II permitiu a anexação do leste da Normandia (com a excepção de Rouen), Vaudreuil, Verneuil e Evreaux ao rei de França.

O conflito entre os dois reinos continuou, sempre com os triunfos militares de Ricardo I. Durante esta disputa o papa Inocêncio III pressionou uma negociação entre as duas facções, para que a paz na cristandade permitisse uma união forte para reconquistar o Santo Sepulcro. Esta situação seria solucionada com a inesperada morte de Ricardo I em 1199.
Perante uma difícil sucessão ao trono inglês, na qual se digladiavam João Sem Terra e Artur I da Bretanha, filho de Godofredo II da Bretanha, Filipe Augusto aproveita a conjectura para apoiar Artur contra João, recebendo a vassalagem do primeiro na Primavera de 1199[1]. Com o tratado de Goulet, de Maio de 1200, João I aceita ser vassalo do reino de França, acordando-se o casamento do príncipe Luís com Branca de Castela, sobrinha de João.
Quando teve oportunidade, Filipe decide confiscar os feudos de João, apresentnado como argumento o casamento do rei inglês com Isabel de Angoulême, que estaria à partida destinada a Hugo de Lusignan. A recusa de João em comparecer à convocação da corte francesa determinou o rumo dos acontecimentos. Violava-se assim o dever de suserania.

Na Primavera de 1202, Filipe II e Artur da Bretanha atacam coordenadamente as possessões de João. Apesar da morte de Artur, no início de 1203, Filipe consegue o auxílio dos vassalos deste e obtêm a conquista total da Normandia, de Poitiers, de Loches e de Chinon. Esta campanha bélica termina com as tréguas de Thouars em 1206.

Questões Matrimoniais

Durante todos estes conflitos, Filipe consegue casar duas vezes. Primeiro, em 1193, com Ingeborg da Dinamarca, irmã do rei Canuto VI, recebendo um dote de 10 000 marcos de prata. Depois da princesa dinamarquesa ter sido enviada para o mosteiro de Saint-Maur-des-Fossés, Filipe II anunciou as suas intenções de anular o matrimónio, alegando uma ligação de parentesco proibida pela Igreja, sendo que na realidade o seu acto resultava da não obtenção dos direitos dos reis dinamarqueses ao trono de Inglaterra. Com o apoio dado por bispos e nobres, Filipe casou com Inês de Méran em 1196 da qual obteve um segundo filho, Filipe Hurepel.

O papa Inocêncio III não concordou com as práticas matrimoniais do rei francês e acabou por, perante a recusa deste em aceitar Ingeborg de volta, lançar um interdicto sobre o reino da França no ano de 1200. A reconciliação entre Filipe e Ingeborg ocorre poucos meses depois e o interdicto é levantando, seguindo-se até 1212 várias tentativas de anulação do matrimónio.

Conflitos Com Outros Vassalos

Quanto aos conflitos com os seus outros vassalos, os anos compreendidos entre 1206 e 1212 foram para Filipe II um período de consolidação das suas conquistas territoriais, subsistindo tensões na Flandres e em Bolonha.
Na Flandres o problema é sucessório, Balduíno IX, Conde da Flandres e de Hainaut, tornou-se Imperador Latino de Constantinopla. Para estabilizar estes condados, o rei casou a única herdeira de Balduíno, Joana de Constantinopla, com Fernando de Portugal.
No condado de Bolonha, a procura de estabilidade pelo poder régio leva ao casamento de Filipe Hurepel com a filha do Conde local, Reinaldo de Dammartin[2].


[1] Guilherme de Roches, Senescal de Anjou e Leonor da Aquitânia também apoiaram Artur I.
[2] Devido a aliança deste senhor com a facção inglesa o rei francês é obrigado a agir belicamente, tomando Mortain, Aumale e Dammartin.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

25 de Abril Sempre

"Há diversas modalidades de Estado: os estados socialistas, os estados corporativos e o estado a que isto chegou! Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos. De maneira que quem quiser, vem comigo para Lisboa e acabamos com isto." Major Salgueiro Maia

Augustus (Parte I)


As Primeiras Conquistas

Desde 1181, acerbou-se o conflito com os barões, liderados por Filipe da Alsácia, que se aliou a um rival de Filipe II, o Imperador Frederico Barbaruiva e a Hugo III, Duque da Borgonha. O monarca francês, perante este episódio, tentou repudiar Isabel Hainaut, declarando-a incapaz de conceber filhos. O conflito resolve-se a favor de Filipe Augusto quando este quebrou a aliança de Filipe da Alsácia com Godofredo III da Lovaina, Duque de Brabante. Em Julho de 1185, o tratado de Boves confirmou a posse do rei de Amiens e a aquisição dos senhorios de Artois, Valois e uma grande parte de Vermandois, todos territórios anteriormente na posse do Conde da Flandres. Filipe é, a partir deste momento, pelo aumento de extensão e enriquecimento do reino, conhecido pelo cognome de Augusto[1], à semelhança dos Imperadores romanos.

Na década de oitenta, os territórios sob alçada do monarca inglês sofrem uma grande instabilidade política. Este confronta-se com um crise de sucessão, com a rebeldia dos seus filhos, que anseiam chegar ao poder nos senhorios que lhes foram atribuídos. Nesta contenda vem a falecer o príncipe herdeiro, Henrique o Jovem, deixando Margarida, irmã de Filipe II, viúva. Esta conjuntura facilita a exigência por parte deste monarca da devolução do dote de casamento da irmã, os territórios de Gisors e Vexin.
Em 1187 Filipe aproveita os conflitos familiares de Henrique II e toma Issoudun e Châteauroux, tendo como aliado o Imperador Romano, Frederico Barbaruiva.

Henrique II continua administrar dos seus territórios, mas na Aquitânia os barões apoiam Ricardo, que tem como aliado Filipe Augusto. Assim, Ricardo torna-se Duque da Aquitânia e senhor de Poitiers, declarando-se vassalo de Filipe nas terras da Normandia, Anjou, Maine, Poitou e Languedoc.
Antes da morte do Plantageneta, a seis de Julho de 1189, este tenta destabilizar os feudos do seu herdeiro ao trono, Ricardo. Filipe aproveita os percalços do inimigo para recuperar as terras de Anjou, Maine, Tourraine, Issoudun, Garçey e Berry, através do tratado de Azay-le-Rideau, celebrado com Ricardo Coração de Leão, já como monarca.


A Segunda Cruzada

Ainda em 1189, o papa Gregório VIII proclamou a Terceira Cruzada, após a tomada de Jerusalém por Saladino em 1187. A paz entre o reino de Inglaterra e de França foi estabelecida antes da partida dos seus monarcas para a cruzada, através da intervenção do Cardeal Albano. Em Junho de 1190 os dois reis juntam esforços fazendo um mútuo juramento de amizade em Vezelay e partindo juntos, aguardando vários meses em Messina, na Sicília. A estes monarcas juntaram-se no esforço de cruzada a maioria dos grandes senhores da França e o Imperador Frederico Barbaruiva.
A ida dos três mais importantes monarcas europeus do período, teve como objectivo garantir a dedicação total de cada um à cruzada, seguindo-se assim uma lógica de vigilância mútua que evitou a concretização dos seus intentos expansionistas.

Antes de partir como peregrino armado, o rei francês deixa um testamento político no qual proíbe a rainha-mãe e o arcebispo Guilherme de reunir o conselho real, excepto por morte, rapto ou traição ao rei; o selo e do tesouro real ficam a cargo dos templários; o espaço urbano era administrado por quatro homens eleitos, sendo a excepção Paris que era administrada por seis; foram escolhidos conselheiros (Frei Bernardo, o jurista Pierre de Marchar, o capelão Adão Guilherme de Garlande e o cavaleiro Hormis) que tinham o poder de aumentar os impostos no regresso ou na morte do rei, podendo também governar até maioridade do príncipe herdeiro, o futuro Luís VIII.
Este documento demonstra o progresso do poder do monarca e a tomada de consciência do seu papel como rei.

A acção de Filipe na Terra Santa cingiu-se ao cerco a São João de Acre e aos conflitos gerados com Ricardo I de Inglaterra. O monarca francês retira-se da cruzada justificando-se perante o Papa com a urgência na resolução da sucessão flamenga. O condado da Flandres acaba por ser atribuído a Balduíno V de Hainaut, em troca de uma grande soma de dinheiro e dos territórios de Péronne e Artois, em nome do seu filho Luís, como herança da falecida rainha Isabel de Hainaut.


[1] Este cognome Augusto pode também advir do mês de Agosto, mês do seu nascimento.

domingo, 24 de abril de 2011

We use Wagner

Colonel Kilgore: "I love the smell of napalm in the morning. You know, one time we had a hill bombed, for 12 hours. When it was all over, I walked up. We didn't find one of 'em, not one stinkin' dink body. The smell, you know that gasoline smell, the whole hill. Smelled like ... victory. Someday this war's gonna end..."

Le Dieudonnê

O reinado de Luís VII, pai de Filipe II, correspondeu a um período conturbado da história da França. O controlo do monarca sobre o reino estava limitado às áreas circundantes de Paris (a chamada Ilha-de-França), por este motivo Luís VI procurou e conseguiu casar o seu sucessor com a única herdeira do rico ducado da Aquitânia[1], Leonor, anexando-se deste modo as regiões do Poitou, Auvergne, Limousin e Gasconha à coroa.

A fragilidade do poder real neste reinado ficou patente nos conflitos com vários senhores, tanto gerados por contendas feudais (em Orleães e Poitiers), como por questões familiares (caso do Conde de Champagne), e também pela tentativa do poder régio de aumentar a sua influência geográfica (caso de Godofredo V de Anjou), sendo que a consequência deste última confronto foi a perda de Vexin e Gisors.

Juntamente com Conrad III, o rei Luís foi um dos monarcas que participou na segunda cruzada (1145 – 1149), cujo fracasso redundou em dificuldades monetárias e demográficas para a França. A situação do reino agravou-se ainda mais no ano de 1151, com o divórcio do rei com Leonor da Aquitânia, resultante da pressão de bispos e barões, que questionavam a consanguinidade do casal. Em 1152 Leonor viola o direito feudal, casando sem consentimento do rei com o seu rival Henrique, o Plantageneta, Conde de Anjou e mais tarde Duque da Normandia e rei de Inglaterra[2]. Gera-se assim em França um grande espaço territorial (que inclui Anjou, a Aquitânia, a Normandia, o Vexin e a Bretanha) sobre a tutela de Henrique II[3].

As relações de Luís VII com o seu rival plantageneta vão ditar a teia política na qual Filipe Augusto nasce. Com apenas duas filhas, da sua relação com Leonor, o rei francês vai procurar ter um descendente varão casando com Constança de Castela. São consequentemente acordados casamentos são entre os filhos dos monarcas ingleses e as filhas, do segundo casamento, do rei dos franceses com o intuito de unir as duas monarquias, para beneficio dos angevinos. No ano de 1159 Henrique II invade o Languedoc e reclama a suserania de Toulouse em nome de Leonor, o seu poder aumenta no continente, enquanto que Luís perde o apoio da nobreza.

Com o seu terceiro casamento, com Adélia de Champagne, Luís VII obtêm o apoio de uma das casas senhoriais mais importantes de França e um descendente masculino, salvaguardando a sobrevivência do seu reino.

Henrique II é, neste período, indiscutivelmente uma importante figura no contexto da cristandade, juntamente com o Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Frederico Barbaruiva. As rivalidades entre estes dois e Luís VII agravam-se com as interferências no poder papal, apoiando conforme os seus interesses o Papa Alexandre III ou o Anti-Papa Victor IV.

A vinte e um de Agosto de 1165 nasce em Gonesse, Ilha-de-França, o tão esperado filho de Luís VII, Filipe Augusto. O seu nascimento foi vivênciado como um autêntico milagre pela família real[4]. Bordonove descreve o momento como o aparecimento de um fôlego de esperança, de um rei justiceiro que enfrentaria o despótico rei britânico.

Em 1169 Henrique II distribui os seus territórios aos seus herdeiros masculinos (Henrique o Jovem, Ricardo e Godofredo), apesar de ainda exercer o poder. Deste modo, Henrique o Jovem, ficou com Inglaterra, Anjou e a Normandia, Ricardo tornou-se Duque da Aquitânia e Godofredo como Duque da Bretanha.
Em 1173, Leonor, afastada da corte do Plantageneta, persuade os seus filhos, Henrique, o Jovem e Ricardo, a revoltarem-se contra o seu pai, sendo também incentivados e apoiados por Luís VII.
Depois de vencida a rebelião, o rei inglês perdoa os filhos e aprisiona Leonor, seguindo-se umas tréguas provisórias entre o rei da França e de Inglaterra, na sequência das quais reafirmou-se a intenção de realizar os casamentos previamente acordados.

A um de Novembro de 1179 Luís VII fez sagrar o seu filho Filipe II, de quinze anos, em Reims. O Arcebispo a presidir a cerimónia foi Guilherme das Mãos Brancas, irmão da Rainha Adélia de Champagne, estando também presentes outros grandes senhores, como o Duque da Normandia (Henrique, O Jovem), o Conde de Blois e de Chartres, o Conde de Hainaut, e os arcebispos de Sens, Bourges e Tours. Como principais ausências destacam-se as de Filipe da Alsácia, Conde da Flandres, e a do rei inglês, como vassalo pelos seus feudos na França[5].
Filipe seria o último monarca francês a ser coroado durante a vida do seu predecessor, acabando com esta tradição dos primeiros reis capetos.


No início do seu reinado, Filipe é alvo da influência de sua mãe e dos irmãos desta (Guilherme das Mãos Brancas, Henrique I de Champagne, Tibaldo V de Chartre e Blois e Étienne de Sancerre).
Tendo conhecimento das rivalidades entre o “partido” flamengo e o de Champanhe, Filipe trabalha para se libertar da pressão dos familiares, incentivando o confronto entre as duas facções. Desta feita, o rei faz um acordo com Filipe da Alsácia, Conde da Flandres, no qual aceita desposar Isabel de Hainaut, filha de Balduíno V de Hainaut, facto que lhe proporciona uma ligação com uma princesa de sangue real carolíngio.

A vinte e oito de Abril de 1180 Filipe II casa com Isabel de Hainaut, obtendo Artois como dote. A realização deste matrimónio ocorreu quase clandestinamente, o que gerou protestos por parte da mãe e dos tios do monarca, que reivindicavam que o enlace teria de ser consentido por prelados e barões.
Estes dois últimos acontecimentos reforçaram a posição do jovem rei face às casas senhoriais da Flandres e de Champagne.

A dezoito de Novembro de 1180 morre Luís VII, Filipe II torna-se o único rei da França. O seu poder territorial é inicialmente fraco, estendendo-se do Sena ao Loire, de Senlis a Bruges, com grande parte do reino da França ainda nas mãos de Henrique II.
As primeiras medidas tomadas pelo jovem monarca são morais, nas quais se destacam a proibição a membros da sua entourage em frequentar tavernas, casas de jogo e de prostituição. Outra medida importante foi a expulsão e a apreensão de bens dos judeus, nos domínios da coroa, em 1182, preencheu os mal providos cofres reais com 15 000 marcos.


[1] Este ducado, que gozava de alto nível de autonomia face ao rei de França, possuía uma corte extremamente evoluída em termos administrativos e culturais, tornando-o um senhorio muito apetecido.
[2] Com esta união Luís VII viu-se obrigado a deixar o seu título de Duque da Aquitânia desejando evitar confrontos com Henrique II.
[3] Também conhecido como Império Angevino.
[4] Chamado de Dieudonnê, a dádiva de Deus, pelo milagre do seu nascimento.
[5] Desde a conquista de Guilherme II, Duque da Normandia, do reino de Inglaterra, o rei inglês ficou com o estatuto de vassalo do monarca francês pelas suas possessões continentais.

Expugnatione Lyxbonensi - Relato Oficial da Conquista de Lisboa (Parte V)


A Comunidade Moçárabe de Lisboa

Após a conquista islâmica de grande parte da Península Ibérica, a grande maioria da população autóctone converteu-se ao Islão, os restantes, que se mantiveram fieis ao cristianismo, encontravam-se abrangidos pelo regime jurídico da dhimma (protecção), que em conjunto com o pagamento de certos tributos, como a jizya, lhes permitiu manter a sua religião e uma substancial autonomia comunitária[1]. A situação destes cristãos sob domínio islâmico, os moçárabes, variava entre fases de estabilidade e de maior descriminação e de tensão social e religiosa, conforme os progressos da Reconquista e a sua interferência em questões político-militares dentro da unidade islâmica peninsular[2].
Segundo alguns estudiosos[3], a população moçárabe de Lisboa em 1147 seria muito expressiva, chegado talvez a metade do seu total, facto que explicaria a rápida implantação do cabido e de outras estruturas religiosas em Lisboa e a falta de conflitos na urbe durante a administração dos primeiros três Bispos[4].

Depois desta breve introdução, passamos à análise do texto e às suas referências aos moçárabes. A primeira das quais ocorre durante a descrição de Lisboa, quando Raul nos informa da inexistência de uma religião obrigatória na cidade[5], facto que critica e que segundo José Garcia Domingues, que corrobora o seu raciocínio com outras fontes, possivelmente se referirá à convivência mais ou menos pacífica de árabes, berberes, muladis e moçárabes neste espaço[6].
A segunda alusão dá-se, também, durante a descrição da cidade, sendo referidos os três mártires de Lisboa, Veríssima, Máximo e a virgem Júlia, e a sua igreja de culto em Campolide[7]. Cremos que esta informação tenderia a ser conservada pelos próprios moçárabes, que se mantinham muito fiéis às suas crenças, tentando conservar a sua identidade de grupo enquanto minoria sob alçada do Islão. Esta informação foi presumivelmente usada por Raul para enriquecer o seu texto com detalhes históricos.
A terceira menção à comunidade moçárabe ocorre, aquando do apelo à rendição dos mouros, com a presença de um Bispo no alto das muralhas, acompanhando o Alcaide e os homens mais importantes da Lisboa mourisca[8]. Outra menção a este Bispo é feita aquando da sua morte pelas tropas cruzadas, que fazem a segunda entrada na urbe amuralhada[9]. É possível que este bispo, que é descrito como sendo muito idoso, tenha sido o mesmo que foi colocado por Afonso VI, no ano de 1095 aquando do curto período de administração deste território pelo Imperador, ou que seja um alto representante da comunidade moçárabe ou um clérigo moçárabe, ou mesmo, se ignorarmos o emprego do termo episcopus e partirmos do pressuposto de que Raul ignora a inexistência de um corpo sacerdotal no Islão, um Imã.
Por fim, a última referência ocorre na descrição dos mouros da cidade atacados pela peste após a sua conquista. O autor refere que “abraçavam-se ao sinal da cruz e beijavam-no, confessavam que Maria, cheia de bondade, é a bem-aventura da Mãe de Deus”, fazendo “invocações a Maria boa, boa Maria[10]. Não podemos sem mais dados saber se estes indivíduos realmente eram cristãos ou se tentavam com estes gestos manter-se vivos perante a brutalidade dos cruzados com os ocupantes da cidade.

Para finalizar, Maria João Branco propõem que Raul, estando presente no longo cerco a Lisboa, tendo contactado com os centros de poder cristãos, demonstrando conhecimento da filosofia árabe[11], tendo acesso à documentação da chancelaria portuguesa, não se refira directamente à comunidade moçárabe da cidade, não por falta de conhecimento, mas por algum problema com este grupo[12]. Talvez o papel que os moçárabes desempenharam neste cerco tenha sido prejudicial aos cristãos, talvez tenham mesmo ajudado a defender a cidade…sobre isto apenas podemos especular.


[1] Vide. Maria Filomena Lopes de Barros, “Moçárabes”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, Direcção Carlos Moreira Azevedo,  Coordenação de Volume Ana Maria Jorge [et al.], Vol. III, J-P, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, p.246.
[2] Cf. Manuel Clemente, ob.cit., p.95.
[3] Cf. Idem, ibidem, p.95 e Maria Filomena Lopes de Barros, ob.cit., p.248.
[4] Cf. Maria João Branco, “Reis, Bispos e Cabidos […], p.56 e Manuel Clemente, ob.cit., p.95. Este último autor menciona que Vieira da Silva, ao estudar a evolução das freguesias de Lisboa, teria chegado à conclusão que as vinte e sete freguesias do período pós-reconquista podiam ter tido origem no período islâmico.
[5] Cf. A Conquista de Lisboa aos Mouros, p.79.
[6] Cf. Manuel Clemente, ob.cit., p.95.
[7] Cf. A Conquista de Lisboa aos Mouros, p.79.
[8] Cf. Idem, ibidem, p.93.
[9] Cf. Idem, ibidem, p.139. A morte deste religioso, e a mais que provável morte de outros moçárabes, perpetrada por esta horda desorganizada, ocorre pela ignorância destes da realidade da península, que não saberiam nem estaria interessada em distinguir este grupo dos seguidores de Maomé.
[10] Cf. Idem, ibidem, p.143. Convém lembrar que os moçárabes não eram adopcionistas, ou seja, não acreditavam que Jesus nascera humano e que mais tarde teria sido adoptado por Deus como seu filho. Essa ideia errónea deriva da perda de informação na tradução dos textos sagrados para o árabe.
[11] Visível aquando da análise da resposta do ancião mouro aos apelos do Arcebispo de Braga.
[12] Cf. Maria João Branco, “A Conquista de Lisboa Revisitada […], p.132, nota 64.