sábado, 4 de junho de 2011

1437 - Um desaire no Magreb

Um dos momentos bélicos da Crónica de D. Duarte, de Ruy de Pina, é o da expedição portuguesa a Tânger, acontecimento ocorrido em 1437 e que na obra em análise tem direito a vinte e quatro capítulos dos quarenta e quatro que a compõem. Os portugueses, liderados pelo Infante D. Henrique, saíram de Ceuta em direcção a Tânger, a maioria da hoste seguiu por terra, num caminho tortuoso e desgastante, os restantes por mar.
Sabemos que este exército terrestre era composto por menos de “dous mil de Cavallo e mil de Beesteiros e tres mil Piaaes”, mais os dois mil homens transportados por mar, e que na hoste existiam corpos mais específicos de soldados, como os ginetes, os homens de armas e, provavelmente, os besteiros a cavalo.
A primeira destas unidades, consistia numa cavalaria ligeira cuja mobilidade se adequava à função de batedor e à prática da “guerra guerreada”, ou seja, o raid militar feito no território inimigo com o objectivo de roubar bens e animais, destruir culturas e emboscar tropas rivais em movimentação[1]. Nesta campanha de Tânger é feita a primeira referência conhecida a este corpo para Portugal, tal ocorre quando o Infante D. Henrique envia em frente da sua hoste uma unidade de trezentos ginetes para explorar o caminho.

Os homens de armas eram soldados integralmente resguardados por peças metálicas de formato anatómico, deslocando-se a cavalo para o campo de batalha, combatendo no início das hostilidades a pé, e voltando a montar para desferir o golpe final no inimigo[2].

Os besteiros a cavalo eram um grupo de elite que combinava o uso de uma das mais letais armas neurobalísticas do período com a mobilidade. A besta usada por estes homens era de tamanho mais reduzido do que o modelo das forças apeadas[3]. O uso desta unidade em Tânger é apenas especulativo, já que a sua menção na crónica de Rui de Pina é feita aquando da descrição dos catorze mil homens que se esperava poder contar nesta conquista[4].

Das armas individuais que na crónica são referidas como sendo usadas pelos portugueses, contam-se apenas bestas[5], paveses[6] e uma cota de malha[7]. É de pressupor que os peões estivessem equipados com lanças e escudos e que os cavaleiros usassem espadas[8] e lanças[9], mas para além do que foi aqui apresentado, não há mais referências a armas e tipos de soldados na crónica em questão.

O cerco a Tânger foi realizado desrespeitando-se algumas das mais importantes “regras”deste tipo de operações militares. O combate iniciou-se me Setembro, o que corresponde ao fim do Verão, período privilegiado para os cercos, devido à abundância de recursos disponíveis aos atacantes e à secagem dos recursos hídricos dos sitiados[10]. Ao chegar à cidade, o Infante D. Henrique deve ter analisado e detectado os pontos mais frágeis da muralha, decidido depois instalar o seu arraial num ponto com uma conta superior ao terreno envolvente[11], facto que não seriam negativo se não tivesse ido contra as indicações do próprio monarca e às recomendações dadas para este tipo de guerra, que advertiam para a colocação do arraial junto de cursos de água ou do mar, sempre que estes existiam, como era o caso, para garantir apoio logístico e militar e uma retirada[12].

O arraial lusitano instalando no topo de um colina, contava com um fosso, estacaria e uma paliçada de madeira[13], possivelmente da altura de um homem, de formato circular, composta por tábuas grossas, pregadas em cima e em baixo, e atravessadas por cintas de madeira no seu interior, sendo reforçadas do lado de fora da parede por paveses[14].

Nas duas tentativas coordenadas de assalto à cidade encontram-se referências interessantes e confusas às armas pesadas usadas pelos portugueses. Como meio primordial para tomar as muralhas de Tânger encontramos a escada, alias cinco escadas, três delas usadas sem sucesso, com apenas uma a chegar ao topo das muralhas[15]. As contrariedades das escadas observaram-se bem neste relato quando se verifica que o seu tamanho é inferior ao das muralhas em três casos, e de na sua subida o atacante estar totalmente exposto às investidas dos defensores[16].

Uma arma de grande utilidade para os soldados que se aproximavam da muralha era a manta. Esta peça era formada por tabuados de madeira grossa, com pegas interiores para facilitar o seu transporte, que garantiam um resguardo seguro dos ataques da muralha aos soldados[17]. No ataque ao ponto mais defensável da cidade, o castelo, D. Henrique usa apenas duas mantas, não se sabendo se foram usadas para proteger soldados que se preparavam para queimar alguma porta nessa área, ou se haveria alguma escada ou “engenhos” não mencionado na crónica que estaria nessa frente de ataque.

Uma máquina de aproximação aos muros usada no assédio à cidade de Tânger, foi a bastida, designada na crónica como “castelo de madeira”. Esta estrutura era uma torre de madeira móvel com rodas, uma versão simplificada das grandes torres com três andares, cobertas de peles para protecção de materiais inflamáveis, que Vegécio descreve. Neste caso, foram colocados besteiros e espingardeiros nesta estrutura para, abrigados por ela e aproveitando a sua altura, atacarem com mais eficácia os defensores das muralhas. Cremos que esta máquina tenha sido montada no local com relativa celeridade a partir de peças previamente preparadas[18].

O termo “artelharia” e o seu plural são recorrentemente usados na crónica para designar bocas-de-fogo. Nesta categoria encontramos na crónica as bombardas e espingardas de mecha.
Por quatro vezes são referidas bombardas portuguesas na crónica, sendo que duas delas são classificadas como sendo “bombardas grossas”. Este tipo de bombardas era elaborado a partir de uma só peça de ferro, fundido ou forjado, sendo uma arma com um calibre de trinta centímetros, carregada pela boca com rocas, ou sacos de metralha[19].
As outras bombardas referidas na obra tinham calibres inferiores a trinta centímetros, sendo carregados pela culatra, disparavam pelouros de ferro fundido ou balas de pedra[20], que atingiam alvos até aos cento e oitenta metros de distância[21]. Os artilheiros deste tipo de armas utilizavam mantas ou manteletes, para se proteger dos ataques do inimigo, mas tais protecções não são referidas na crónica como tendo sido usadas para esta função.

As espingardas de mecha eram armas de fogo portátil, utilizadas pelos espingardeiros, que se caracterizavam por serem bocas-de-fogo longas, de reduzido peso, mas movimentadas por dois homens. Eram consideradas “peças de artilharia ligeira, e não armas de fogo individuais”[22], cuja primeira utilização registada do seu uso no exército português se deu no cerco a Tânger de 1437[23]. Julgamos que depois de capturadas as bombardas, durante o cerco ao palanque, os portugueses mantinham ainda em sua posse espingardas de mecha ou outras bocas-de-fogo não identificadas, pois o termo “artilharias” é ainda empregue para definir o armamento que os portugueses, já cercados, possuíam.


Outra palavra enigmática que aparece regularmente é “engenho”, termo genérico que figura nas crónicas do século XV e XVI para designar o uso de máquinas de tensão de cordas (como a balista e a catapulta), de torção de cordas (como o mangonel e a algarrada), de contrapeso (como o trabuco), ou “baseados na deflagração de pólvora em tubos metálicos” (como os trons ou as bombardas)[24]. Como não existe nenhum indício da presença dos dois primeiros tipos de máquinas na crónica, e como as referências a “engenho” aparecem intimamente ligadas à artilharia[25], crê-mos que este termo é empregue na crónica para se referir a bocas-de-fogo não identificadas, exceptuando no capítulo em que é construída a bastida, referida como “engenho de madeira”[26].

Apenas para terminar esta “inspecção” às armas de assalto, é necessário salientar um outro erro do Infante D. Henrique no cerco a Tânger, a colocação da artilharia junto aos muros da cidade, tornando-as vulneráveis aos ataques dos inimigos mais próximos, acabando eventualmente por serem capturadas numa sortida dos sitiados.

Passado agora para o lado muçulmano, comecemos por analisar os sitiados. Dentro dos muros de Tânger estava como seu capitão o último Capitão da Ceuta islâmica, Salah-ibn-Salah, comandando um total de sete mil homens, incluindo seiscentos besteiros vindos do Reino de Granada, facto que demonstra o conhecimento atempado do plano português em conquistar esta praça. Além deste reforço de homens, na cidade teriam sido feitos reparos oportunos às áreas mais frágeis das estruturas defensivas, como alias pode ser interpretado das palavras de Rui de Pina quando refere que as portas, então atacadas pelos portugueses, foram emparedadas com pedra e cal. Ainda sobre a estrutura defensiva desta urbe somos informados da existência de uma barbacã, de várias portas, entre as quais a Porta de Fez e o Postigo de “Guyrer”, de parcelas dos muros cuja elevação era inferior à restante estrutura, e que, depois dos ataques portugueses, partes da muralha se encontravam danificadas.

Em termos de equipamento bélico, os sitiados contavam, pelo menos, com bestas[27] e peças de artilharia, das quais são identificadas uma bombarda e vários trons. Esta última boca-de-fogo era mais arcaica que a bombarda, disparando pelouros de ferro fundido e sendo carregada pela culatra[28].

Já quanto aos exércitos que chegaram para socorrer a cidade, temos números muito elevados e exagerados. A primeira força que é referida conta com quinhentos cavaleiros “e muytos de pee, seguida de outra de dez mil cavaleiros e noventa mil peões, e por fim as forças do rei de Fez prefaziam sessenta mil cavaleiros e setecentos mil peões. Parece-nos que Rui de Pina tendo de falar desta derrota militar, transforma-a numa luta épica entre poucos mas bons contra muitos e sem valor, autênticos cobardes que apesar de terem cercado os portugueses no seu palanque, hesitam atacar face à grandeza do oponente, até ao momento que este esteja realmente débil.

O ataque ao arraial português iniciou-se antes de este ser cercado, com os referidos reforços muçulmanos a praticarem várias vezes, e com grande sucesso, a técnica do “torna-fuye”, ou seja, uma cilada na qual um pequeno grupo de cavaleiros se desloca para a imediação da posição inimiga, provocando uma saída pouco organizada de um grupo de cavaleiros adversários, que os persegue até uma posição na qual estes últimos são atacados por um contingente bastante superior[29]. Já durante o cerco ao palanque, foi arremessada muita lenha aceza, e alcatram” para danificar a paliçada de madeira, fazendo-se ataques ao arraial com soldados apenas equipados com agomias[30], não havendo qualquer menção a outra arma, como ao arco cujo uso seria de esperar tendo em conta que palanque não era protegido no topo.
Cientes da frágil condição dos portugueses, os muçulmanos contribuíam ainda mais para a morte lenta dos cercados, conspurcados com cadáveres de animais os poços próximos do arraial, preparando-se para a eventualidade de estes os conseguirem aceder.


[1] Cf. João Gouveia Monteiro, “Estratégias e Tácticas Militares”, in Nova História Militar de Portugal (…), p.225.
[2] Cf. Luís Miguel Duarte, “1449-1495: O Triunfo da Pólvora”, ob.cit., p.350. e João Gouveia Monteiro, “Estratégia e Tácticas Militares”, ob.cit., p.234.
[3] Vide Infra. Nota 17, p.21, para a definição de besta.
[4] Eram “quatorze mil homens, tres mil e quinhentos homens d'armas e quinhentos Beesteiros de Cavallo, e dous mil e quinhentos Beesteiros de pee, e sete mill piaães”.
[5] Vide Infra. Nota 17, p.21, para a definição de besta.
[6] Um tipo de escudo longo e largo, que foram usadas para reforçar o lado de fora das paredes da paliçada que protegia o arraial português.
[7] Vide Infra. Nota 14, p.20, para a definição de cota de malha. Para além destas armas, são referidas fora deste contexto bélico o elmo e a lança do falecido D. João I, aquando do seu saimento.
[8] Esta é, em conjunto com a lança, a arma por excelência do cavaleiro medieval. O guerreio segurava a espada pelo punho, tendo a sua mão protegida por uma peça perpendicular à lâmina, que separava o punho da lâmina. Na base do punho encontrava-se o pomo, peça pesada que servia para recuar o centro de gravidade da arma, reduzindo o esforço do pulso do soldado que empenhava a espada. A lâmina de ferro era o componente letal desta arma, podendo ser direita ou possuir dois gumes, sendo usada de duas maneira, cortando-se ou estocando-se (João Gouveia Monteiro, A Guerra em Portugal (…), pp.539-541 e Mário Jorge Barroca, “Armamento Medieval”, ob.cit., p.136).
[9] Vide Infra Nota 16, p.21, para a definição de lança.
[10]Cf. João Gouveia Monteiro, “Estratégia e Táctica Militar ” ob.cit., p.226.
[11] Num “Oiteiro contra ho Cabo d'Espartel”.
[12] Cf. Idem, ibidem, p.226.
[13] O arraial é descrito como tendo um “vallo e repairos” e “ho palanque”.
[14] Cf. Luís Miguel Duarte, “África”, ob.cit., p.439. Para a definição desta arma Vide Infra. Nota 39, p.24.
[15] A quinta escada não chegou a ser usada, tendo sido transportada de Ceuta, a mesma praça que tinha ajudado a conquistar mais de vinte anos antes.
[16] Neste caso foram usadas “fogo d'alcatrão e muyto linho” para as inutilizar (XXVIII, pp.166-167).
[17] Cf. Idem, ibidem, p.439.
[18] Cf. Idem, ibidem, p.439.
[19] Cf. Idem, “1449-1495: O Triunfo da Pólvora”, ob.cit., p.357.
[20] Cf. João Gouveia Monteiro, A Guerra em Portugal (…), p.535.
[21] Cf. Luís Miguel Duarte, “África”, ob.cit., p.356.
[22] Cf. Idem, ibidem, p.351.
[23] Cf. Idem, ibidem, p.371.
[24] Cf. João Gouveia Monteiro, “Castelos e Armamento” in Nova História Militar de Portugal (…), p.180 e Idem “Estratégia e Tácticas Militares”, ob.cit., p.229
[25] Partilhando ambos da mesma localização no terreno de batalha, e sendo mencionados em conjunto na crónica (Vide CDD, Cap. XXV, p.160; Cap. XXI, p.150; Cap. XXIX, p.169).
[26] Cf. CDD, Cap. XXVIII, p.166.
[27] Vide. Nota 16 p.21, para a definição de besta.
[28] Cf. João Gouveia Monteiro, “Castelos e Armamento”, ob.cit., p.182.
[29] Cf. Luís Miguel Duarte, “Africa”, ob.cit., p.410.
[30] Que eram “facas longas e curvas, extremamente afiadas” (Luís Miguel Duarte, “Africa”, ob.cit., p.413)

Sem comentários:

Enviar um comentário