terça-feira, 19 de junho de 2012

Tensões e Conflitos com a Ordem de Santiago em Portugal durante os séculos XIII e XIV - Parte III


Com os Clérigos - Incluí relato sobre o Bispo de Silves com mais detalhe

No Terceiro Concílio de Latrão, realizado em 1179, foram apresentadas queixas pelos bispos sobre o desrespeito da sua autoridade pelas Ordens do Templo e de São João do Hospital[1]. Este mal-estar no ceio dos prelados diocesanos da cristandade, causado pela liberdade que as Ordens gozavam nas jurisdições destes, submetendo-se apenas ao poder Papal[2], não tardaria a contaminar o clero português na sua posição face à Ordem de Santiago. Tal já é observável num documento papal da década de oitenta do século XII, em que Lúcio III ordenava aos bispos da Península Ibérica que não impedissem a concessão de ordens, nem o acesso aos óleos santos, para os sacramentos, aos freires de Santiago, lembrando ainda que estes não podiam ser excomungados pelos prelados[3]. Devido à necessidade de resolver estas tensões que teimavam em permanecer, o mesmo papa, numa confirmação dos bens desta Ordem, aproveita para estatuir os direitos episcopais exercidos sobre os espatários[4]. Apesar deste esforço do Santo Padre, a situação não se alterou, havendo posteriormente mais apelos do papado ao entendimento entre os bispos e os freires de Santiago[5].

Já numa fase mais avançado da presença da Ordem de Santiago em Portugal, em que esta possuía um vasto e rico senhorio, gozando de numerosos privilégios, ocorreram vários conflitos com bispos, causados na maioria dos casos pelas tentativas da Ordem de se eximir da jurisdição episcopal e de obter a diminuição do dízimo. Deste tipo de contendas seleccionamos apenas duas como exemplo, ambas do século XIV, uma com o bispo de Silves e outra com o de Évora.

No ano de 1285 o bispo de Silves D. João Soares Alão, procurando evitar conflitos com os santiaguistas, faz uma composição com esta Ordem sobre as igrejas de Faro, de Tavira, de Cacela e de Castro Marim, dividindo-se entre estes dois poderes as rendas e o direito à escolha dos raçoeiros[6]. Esta composição foi em grande parte respeitada até ao falecimento deste bispo e à sua substituição por D. João Eanes, que, pelo que é descrito em vários diplomas, aparenta ter sido uma indivíduo muito temperamental, que não teve problemas em desrespeitar os direitos e privilégios da Ordem, chegado mesmo a humilhar os seus freires. Esta contenda com o novo bispo inicia-se em 1315, com um elevado número de queixas, apresentadas ao próprio D. João Eanes, sobre as irregularidades no comprimento do convénio estabelecido sobre as igrejas do Algarve, e sobre a má postura do bispo com a Ordem e os seus membros, chegando-se a violar preceitos canónicos. Estes agravos estão presentes num diploma de D. Lourenço Anes, Mestre da Ordem, datado desse mesmo ano, perfazendo um total de dezassete queixas, que são aqui sumariamente apresentadas[7]: primeira, o bispo é acusado de cometer agravos às igrejas de São Clemente de Loulé, de Santa Maria de Faro, de Santa Maria de Tavira, de Santa Maria de Cacela, de Santa Maria de Castro Marim e de Santa Maria de Alcoutim, não cumprindo os ditames da composição antes estabelecida, e recusando-se a pagar “aa outra parte quinhemtos marcos de prata” estabelecidos como coima; segunda, os freires de Tavira, ao serviço do rei, foram, “non seendo amoestado, nem citados, nem ouvidos”, excomungados pelo bispo, o que não era admissível já que estes eram de tal modo “privilligiados que nenhum arcebispo nem bispo nom possam poer sentenças descomunhoens”; terceira, um mandado de pronunciamento contra o mestre da Ordem foi entregue pelo bispo ao freire Pedro Domingos, prior da igreja de Santa Maria de Tavira, que se ao recusar a faze-lo acabou excomungado pelo prelado, sendo também por este mandado “deitar hum varaço aa garganta e que o trouxesse a redor da igreja”; quarta, acusa-se o bispo de usar “muitas maas pallavrase muitos doestos e fazendo nos (à Ordem) muitos viltamentos em público e muitas ameeças”; quinta, acusa-se o bispo de recolher dos padroeiros da Ordem entre trinta a trinta e três libras de colheita, quando o que tinha sido definido encontrava-se no intervalo das dez a doze libras; sexta, afirma-se que “os raçoerios que vos (bispo) presentarom os nossos freires prioles das dictas nossas igrejas (…) que as confirmedes e non nas querendo confirmar por vos presentem pessooas booas e ydonias que mereceem taaes benefícios”, lógica essa que não foi seguida no caso do candidato Rui Martins, freire da Ordem, preterido por D. Francisco Pires, sobrinho do bispo; sétima, afirma-se que o prelado de Silves recusou-se a pagar aos priores das igrejas a metade das suas rações, acabando a Ordem por pagar a sua metade acordada e o quarto que se encontrava em falta da diocese; oitava, acusa-se o bispo de excomungar Afonso Eanes, freire da Ordem, não tendo este chegado a ser “amoestado, nem citado, nem ouvido”, e de o ameaçar várias vezes, furtando-lhe “huum cavalo em sellado e em frreado e hûa ascuas que valia todo cento e cinquoenta livras”; nona, durante uma convocatória para a realização de um sínodo da diocese, três freires de Santiago, Afonso Eanes, Pedro Domingues e Ramiro Dias, priores de Loulé, Faro e Tavira respectivamente, envolveram-se numa azeda troca de palavras com apoiantes do bispo, tendo Afonso Eanes sido excomungado pelo bispo três vezes ao tentar aclamar ambas as partes, decidindo depois apresentar queixa da situação a um tabelião, facto que provocou a ira de D. João Eanes que decidiu excomungar os três piores santiaguistas; décima, viola-se o direito e o costume do bispado de Silves e de “todollos outros bispados que os prioles cada huum em sa igreja ponham thesoureiro e scripvam” que escolherem, pois o bispo “contra a vontade dos nosos freires priores colocou os seus tesoureiros e escrivães que recebiam as “rendas e dirreitos” da Ordem enviando-os para a diocese; décima primeira, o bispo ordena que “nom sayam do bispado a nenhûa parte que ajam d'adubar ou de aderençar algûas cousas necessárias em cas de nosso senhor el Rey ou conosco sem nossa licença”, medida esta que é descrita como “mal querença”, pretendendo D. João Eanes obter assim dos freires doze soldos por licença; décima segunda, o bispo castigou João Peres, um clérigo raçoeiro da igreja de Tavira, devido a algo que este lhe tinha dito durante a confissão, mandando-o “trazer com huum baraço na garganta e descalço dos pees per tres vezes andando arredor da igreja”; décima terceira, perante o caso anterior Pedro Domingues, prior da igreja de Tavira, contestou o acto e acabou excomungado pelo mesmo prelado, que mais tarde o absolveu quando este aceitou se humilhar submetendo-se ao mesmo castigo infligido a João Peres; décima quarta, D. Vasco Gonçalves, arcediago de Silves, descrito como “muito boom homem de bom logo e muy letrado”, aconselhava o bispo de Silves a não cometer actos como os citados neste documento, acabou sendo humilhado publicamente e agredido por este; décima quinta, Martim, escudeiro de Tavira, foi agravado pelo bispo, sendo só absolvido por este após o pagamento da quantia de cem libras; décima sexta, o bispo agarrou pelos cabelos de Francisco Peres, clérigo raçoeiro da igreja de Faro, e deu-lhe “muitos couces e muitas punhadas”, despindo-o e dando-lhe “tantos açoutes que por nove dias non se pode levantar”, sendo depois ainda colocado numa cova; décima sétima, D. Martim Rodrigues, tesoureiro de Silves, convidado a comer em Penina num banquete do bispo foi excomungado sete vezes num espaço de uma hora por este, sem motivo aparente, violando-se mais uma vez as “compossições que forom feitas e mantheudas pollos bispos” antes deste, já que este membro da Ordem, tal como outros antes, não foi “amoestado e chamado e ouvido per cabidoo”.

Sobre o resultado deste diploma nas relações com o Bispo de Silves nada se conseguiu apurar, podendo apenas se confirmar a existência de pelo menos mais um bispo algarvio que teve más relações com os santiaguistas, de seu nome D. Álvaro Pais (1333-1350), que hostilizou também o próprio clero da diocese e o rei português. Facto este que acabou por definir o seu final de vida, no ano de 1353, como refugiado em Sevilha[8].


[1] Cf. Henrique Gama Barros, ob.cit., p.376.
[2] Cf. Idem, ibidem, p.376.
[3] Cf. “Livro dos Copos - Vol. I”, ob.cit., doc.5, pp.76-77.
[4] Cf. Idem, ibidem, doc.46, pp.132-133.
[5] Destas solicitações deixamos aqui dois curtos exemplos: o apelo de Inocêncio IV ao Arcebispo de Braga, para que este não recusasse dar os santos óleos aos santiaguistas, nem interrompesse a eucaristia aquando da sua presença (“Livro dos Copos - Vol. I”, ob.cit., doc.9, p.78); e a bula de Alexandre IV que avisa os bispos e arcebispos que não podiam imiscuir-se nos interesses da Ordem, alegando a protecção dos direitos destes, pois caso o fizessem incorreriam na pena de excomunhão (“Livro dos Copos - Vol. I”, ob.cit., doc.2, p.71).
[6] Cf. Idem, ibidem, ob.cit., doc.231, pp.402-403.
[7] Todas as citações e informações que se seguem provêm do documento 236, páginas 410 a 415 do Livro dos Copos, Vol. I.
[8] Vide. Bernardo Vasconcelos e Sousa, ob.cit., p.133.

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