domingo, 10 de julho de 2011

Perseu - O Mito e o filme Clash of the Titans (1981) - Parte I

Em primeiro lugar o filme em questão é de 1980, e na sua produção recorreu-se a uma equipa que já tinham trabalhado em conjunto, num filme anterior, Jason and The Argonauts, de 1963, como são os casos do argumentista, do produtor e do criador de efeitos especiais. Tendo este filme como alvo um público americano bastante vasto, o seu argumento foi escrito para não conter momentos demasiado violentos, como no mito de Perseu que lhe serve de base, valorizando-se, assim, a carga mágica da história[1]. Deste modo, a adulteração face ao mito que o inspira é enorme, o que empobrece a carga mítica e poética do filme[2]. Outro aspecto que salienta o carácter adaptativo do filme às massas, é a presença de aspectos da mentalidade contemporânea, casos do estereótipo do herói americano, que resgata donzela[3], o romance amoroso entre Perseu e Andrômeda, o carácter paternalista do chefe dos deuses do Olimpo, a segregação social, aplicada à personagem Calibos, e o recurso a um mocho mecânico, que ajuda o herói e que parece ser resultado da influência do então recente Star Wars[4].

Segue-se agora a descrição da acção do referido filme, comparando-o com o mito de Perseu. No início desta película, o espectador é confrontado com a realização de um acto cruel por Acrísio, rei de Argos, o do envio da sua filha filha, Dánae, e do seu neto, ainda bebé, Perseu[5], para o mar num receptáculo de madeira semelhante a um caixão[6]. Durante os créditos iniciais é visível na tela uma ave, talvez uma gaivota, que observou o referido acto e que afinal revela ser o deus dos mares, Posídon, que informa Zeus do sucedido. Nesta sequência, decorrida no Olimpo, o espectador é apresentado aos deuses, Atena, Afrodite, Hera, Posídon, Tétis[7] e Zeus, sendo que este último encontra-se furioso com Acrísio, por este ter posto em causa a vida do seu filho[8], e resolve mandar destruir a cidade de Argos[9] com uma criatura marinha[10]. Além disso, neste encontro no Olimpo, Zeus decidiu que Dánae e o seu filho iriam ter sãos e salvos à ilha de Sérifo, onde o jovem Perseu cresce e torna-se um homem hábil e belo. A sua mãe desaparece nesta produção filmica logo antes do herói alcançar a idade adulta, o que é uma substancial diferença do mito, já que ela é objecto da cobiça do rei local, Polidectes[11], que utiliza o herói para indagar a cabeça de uma das três Górgonas, a de Medusa[12], a única mortal[13], com o pretexto de esta ser a prenda para o seu casamento com Hippodamia[14]. O objectivo deste tirano era unicamente o de afastar o jovem Perseu de sua mãe de modo a que este não impedisse o casamento entre ambos[15].
De volta à acção filmica, a passagem do jovem Perseu para a cidade de Joppa[16] faz-se através da interferência de Tétis[17], que age enraivecida com o ignorar do seu apelo ao perdão do seu filho, Calibos, a quem Zeus tinha entregado o cuidado das crateras da Lua. Como Calibos caçou e matou tudo o que nelas vivia, incluindo os cavalos alados de Zeus, dos quais apenas restou o Pégaso[18], foi castigado por Zeus que o transformou numa figura monstruosa, que é obrigada a viver num pântano. Esta personagem, que corresponde ao rival de Perseu, é uma criação do argumentista, e resulta da importação de um tema já usado na Ilíada, o da mãe do herói, como é o caso de Tétis, mãe de Aquiles.

Aquando da sua chegada a este teatro Perseu estabelece um laço de amizade com um actor, Ammon[19], e recebe das deusas do Olimpo, a mando se seu pai, um escudo, de Hera, um elmo, de Atena, e uma espada, de Afrodite[20]. Esta decisão de Zeus permitiu auxiliar o seu filho nas tarefas que se seguem, e, ao mesmo tempo, é uma resposta à interferência de Tétis. Perseu segue o seu destino e vai à cidade de Joppa, onde é informado da maldição que a cidade sofre e de que todos os pretendentes à princesa Andrômeda, não tendo tido sucesso na resolução do charada necessário para com ela poderem casar, são queimados[21].

Aguçado por este desafio, o jovem herói aventura-se no quarto da princesa, recorrendo ao seu elmo que o tornava invisível, e observa-a constatando que esta passa grande parte do tempo adormecida e que a certa altura da noite é visitada por um abutre gigante, que leva consigo uma gaiola na qual o espírito da princesa é levada. O que ocorre a Andrômeda é consequência do encantamento de Tétis, resultante da recusa desta de levar avante o seu casamento com o horrendo Calibos. Decidido a seguir o abutre da noite anterior Perseu vai ter ao local no qual Pégaso vai beber no fim do dia capturando-o e domando-o[22]. Com o cavalo alado, Perseu segue o abutre e chega aos pântanos desoladores, e cheios de corcodilos, nos quais vive Calibos e a sua corte. Neste local observa a princesa, graças ao seu elmo, apercebendo-se que esta é perturbada pelo feitiço e ouve a advinha que Calibos lhe enuncia para o próximo pretendente. Consequentemente, ao tentar encontrar Pégaso, Perseu é atacado pelo próprio Calibos, sendo que no confronto este último perde a mão esquerda e o herói perde o elmo.
Na sessão seguinte de apresentação de candidatos à princesa, Perseu apresenta-se e desvenda o enigma de Calibos, ganhado assim a mão em casamento de Andrômeda. Em consequência do pedido de vingança de Calibos e da imprudência de Cassiopeia, rainha da cidade, que afirma a superioridade da beleza da sua filha, Andrômeda, à de Tétis, esta deusa promete a destruição de Joppa em trinta dias caso a princesa não seja sacrificada ao Kraken[23].

Perante este cenário, Perseu decide recorrer às três bruxas[24], apreciadoras de carne humana, para conhecer um modo de destruir o monstro. Entretanto, Pégaso é capturado por Calibos e pelos seus homens, e Zeus manda Atena enviar o seu mocho, Bubo, para auxiliar Perseu, sendo enviado um mocho mecânico, feito por Hefesto, que guia Perseu até a um templo em ruínas onde se encontram as três bruxas, que partilhando um só olho entre elas são facilmente obrigadas a colaborar com Perseu, pois este, através do mocho, consegue-lhes roubar-lhes o olho. Sabendo então que a única coisa que pode vencer o Kraken é a cabeça de Medusa[25], Perseu dirige-se para a ilha dos mortos, tendo já sido avisado da capacidade da Górgona de transformar todos que a olham em pedra[26] e de possuir sangue venenoso e mortal.



[1] Cf. Fernando Lillo Redonet, El Cine de Tema Griego y su Aplicación Didáctica¸ Madrid, Ed. Clásicas,  2001, p.81.
[2] Cf. idem, ibidem, p.81.
[3] Cf. idem, ibidem, p.84.
[4] Cf. idem, ibidem, p.82.
[5] Já mesmo a Ilíada (capitulo XIV, verso 319) refere a ligação familiar de Perseu com Acrísio.
[6] Este acto é reprodução do mito de Perseru (Higino, Fábulas, capitulo LXII - Dánae).
[7] Na mitologia grega Tétis é representada como um ninfa do mar, a mais jovem das Titânides, e não como um deusa olímpica.
[8] No filme, Acrísio, antes de condenar a sua filha e neto à turbulência do mar, afirma que o filho dela é de Zeus, facto este que no mito Acrísio nunca reconhece (Ovídio, Metamorfoses, Livro IV, 604-662), acreditando que esta criança é fruto dos amores de sua filha com o seu rival e irmão, Preto (Apolodoro, Biblioteca, Livro II, 4.1).
[9] A apresentação do extermínio de Argos é remanescente das ideias que o espectador normalmente relaciona com a aniquilação da Atlântida, com a sublevação das águas sobre a cidade. Curiosamente Argos não era uma cidade costeira como aqui é representada.
[10] Esta criatura no filme tem o nome de Kraken, que é um termo importado da mitologia nórdica e que se refere a uma lula ou polvo gigante, descrição esta que não corresponde à do monstro do filme. No mito em análise, aquando do sacrifício de Andrômeda aparece um monstro marinho, mas a este não é lhe dado qualquer nome.
[11] Este é irmão de outra personagem que não é referido no filme, Díctis, que recolheu o Dánae e o seu filho, e criou a criança (Apolodoro, Biblioteca, Livro II, 4.1).
[12] Segundo o mito, Medusa é filha de Forcis e Ceto (Hesíodo, Teogonia, 270-275), tendo duas das Gorgonas como irmãs, Esteno e Euríale (Hesíodo, Teogonia, 275-280). É descrita como se tendo serpentes invés de cabelo, possuindo grandes presas, semelhantes às do javali, mãos de bronze, asas de ouro, olhos cintilantes e um olhar penetrante que transformava em pedra quem a visse (Apolodoro, Biblioteca, Livro II, 4.2). A imagem monstruosa desta figura teria sido resultado de um castigo da deusa Atena, que fora causado pela ousadia de Medusa ao rivalizar com a beleza desta, ou pelo desrespeito à deusa no seu templo, através da prática sexual com Posídon (Ovídio, Metamorfoses, Livro IV, 706-752).
[13] Cf. Hesíodo, Teogonia, 275-280; Apolodoro, Biblioteca, Livro II, 4.2.
[14] Cf. Apolodoro, Biblioteca, Livro II, 4.2.
[15] Cf. Apolodoro, Biblioteca, Livro II, 4.2. Higino em Fábulas (capitulo LXII – Dánae) fala de um outra versão na qual a mãe de Perseu casa com o rei de Sérifo sem que houvesse impedimento por parte do filho.
[16] Aqui representada como resultado de uma miscelânea entre cidades do mundo mesopotâmico e das mil e uma noites. No mito de Perseu a acção passa-se na Etiópia (Apolodoro, Biblioteca, Livro II, 4.2-4.3).
[17] Esta intervenção é apresentada ao espectador via o recurso a uma figura de barro, que representa o herói, a ser colocada no meio de um modelo de um teatro. No filme esta é a segunda vez que a intromissão dos deuses é apresentada deste modo, sendo a primeira o momento no qual Zeus esmaga a figura de Acrísius, durante a destruição de Argos, provocando a sua morte.
[18] Na verdade Zeus nunca teve uma manada de cavalos alados.
[19] Será que esta personagem é a mesma que no mito prevê para o rei Cefeu que o sacrifício de Andromeda possa salvar a cidade deste rei da destruição (Apolodoro, Biblioteca, Livro II, 4.3), ocupando no filme uma função diferente.
[20] Cf. Fernando Lillo Redonet, ob. cit., p.82.
[21] O conhecimento do que atormenta a donzela, para com ela poder casar, é um topos bastante comum.
[22] Esta cena não é baseada no mito de Perseu, mas sim de Belerofonte, que consegue domar Pégaso. Além do mais, no mito de Perseu Pégaso nasce do corpo de Medusa depois desta ter sido decapitada pelo herói (Hesíodo, Teogonia, 280), logo a sua utilização no filme tem está relacionada com o enaltecer do maravilhoso.
[23] No mito Cassiopeia considera-se a ela (Apolodoro, Biblioteca, Livro II, 4.3) ou a filha (Higino, Fábulas, cápitulo LXIV- Andrômeda) mais bela que as nereides, o que é recebido por estas com desagrado exigindo o sacrifício de Andrômeda para salvar a cidade ou afirmado apenas a destruição da cidade, por acção de Posídon.
[24] Estas são nada mais do que as três Greias, da mitologia grega, que no mito indicam a Perseu aonde ele se tem de deslocar para encontrar as ninfas (Apolodoro, Biblioteca, Livro II, 4.2), que tinham em sua posse os elementos necessários para vencer a Medusa (Apolodoro, Biblioteca, Livro II, 4.2). Estas três feiticeiras tem uma roupagem mais Shakespeariana de Macbeth do que mitológica, sendo que do mito partilham o facto de terem só um olho para as três, e que Perseu se apodera desta para obter as informações que deseja.
[25] No filme a aparência reptiliana da Górgona resulta do castigo de Afrodite, pela união sexual de Medusa com Posídon no templo da deusa.
[26] Tal como no mito de Perseu (Apolodoro, Biblioteca, Livro II, 4.2).

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