domingo, 12 de junho de 2011

Nota breve sobre a Revolta Campesina de 1358 no reino da França.


Para a compreensão deste fenómeno, a Jacquerie[2], é necessário analisar o contexto histórico no qual se insere, ou seja, na Guerra dos Cem Anos, além de se ter em consideração o texto que lhe serve de base para a análise.

A Guerra dos 100 Anos inicia-se no ano de 1340 quando o rei inglês, Eduardo III, se declarou rei de França. Este acto, motivado pela sua maior proximidade à linha de sucessão directa ao trono francês[3] do que a de seu primo, o rei Filipe VI, é juntamente com a submissão do rei inglês ao seu homologo francês em relações vassálicas, que levou a um conflito de interesses entre as coroas[4], e a luta pelo controlo de áreas fundamentais para o comércio e para a produção e transformação de bens, caso da Gasconha, da Guiena, e da Flandres, os motivos deste conflito.
No período de 1340 a 1346 a guerra teve como momentos chave a batalha naval de L´Ecluse, a invasão da Normandia, a batalha de Crecy e a tomada de Calais, tendo as tréguas sido estabelecidas oficialmente em 1347, devido à chegada da peste negra ao território francês. No fim deste período de guerra o saldo apresenta-se negativo para os franceses[5].

O reiniciar das hostilidades dá-se no ano de 1354, com um novo actor político, que será fundamental para o desenrolar dos acontecimentos, João II, o Bom, filho de Filipe VI, que herda um reino à beira do colapso económico. A passagem da peste negra na França causou a morte de um terço da população, dizimando os camponeses, afectando a produção agrícola e causando a fome e o aumento dos preços dos produtos.
Para além disso, aquando da coroação do novo rei este mandou desvalorizar a moeda para poder realizar uma sumptuosa cerimónia[6].
Em 1354 o príncipe Negro, filho do rei inglês, faz uma campanha militar a partir de Bordéus sobre o sul e centro da França. Como resposta a tal agressão o rei francês reúne os estados gerais e obteve 30000 mil homens e 3 milhões de libras, partindo em direcção ao invasor com superioridade numérica. O local de batalha entre os dois exércitos dá-se em Poitiers com a vitória a pertencer aos ingleses[7], que conseguem capturar e matar importantes nobres e aprisionar o rei francês.
No seguimento deste desastre militar, o delfim[8] Carlos fica à frente da governação do reino, decidindo convocar os estados gerais do Langue d´Oil para poder obter o dinheiro necessário para continuar a guerra contra o invasor e resgatar o rei.
Nesta primeira convocação dos estados gerais pós-Poitiers, realizada em Outubro de 1356, nada se alcançou. Os estados gerais exigiam a investigação da política passada do governo dos Valois e a cedência às suas exigências, ou seja, a dissolução do concelho do rei, a demissão dos ministros do reino, e a entrega do governo a uma comissão mista de membros da nobreza e da burguesia[9].
É nesta situação de tensão administrativa que se vai salientar um poderoso mercador de Paris, o preboste dos mercadores e líder da Hansa da cidade, Étienne Marcel, que conhecendo o caso de Van Artevelde[10] o ambicionava copiar.
Nesta reunião já se vislumbravam as ambições políticas de nobres e de burgueses, que afectavam a resolução dos problemas do reino, como é o caso do rei de Navarra, Carlos II, o Mau, que sendo primo do regente, neto de Luís X, ambicionava a coroa de França, que conseguiu obter grande apoio de nobres e clérigos nesta assembleia, como Robert Le Coq, bispo de Leão[11].
Perante as exigências dos estados gerais o delfim decidiu dissolver a assembleia e apoiar-se na outra figura de destaque desta reunião, Étienne Marcel, devido ao seu poder económico.
Na primavera de 1357 realizou-se outra reunião dos estados gerais, onde foi visível que Marcel pretendia, independentemente de quem usasse a coroa, manter a sua nova posição de administração económica do reino, obtida com estas assembleias. Facto que explica a sua aliança com Carlos II, que foi usada para impedir qualquer decisão efectiva dos estados gerais[12].
Ao mesmo tempo que isto acontecia, na cidade de Paris vivia-se um ambiente muito tenso, à beira de uma insurreição, devido à ineficiência governamental e, consequentemente, ao agravar dos problemas económicos. É neste clima que se realiza na cidade a terceira reunião dos estados gerais, em Fevereiro de 1358, durante a qual ocorre a ida da milícia de Marcel ao palácio do delfim, com o intuito de o pressionar para ceder o poder à assembleia, já controlada por Étienne Marcel. Deste acontecimento, onde se ameaçou a integridade física do regente, resultou a rotura total entre este e Marcel, com a saída do primeiro de Paris e a morte dos seus marchais de Champagne e da Normandia às mãos da milícia do partido burguês[13].
Em resposta ao desafio dos seus adversários o delfim colocou os poucos homens a seu dispor em pontos estratégicos à volta de Paris, com o intuito de levar a cidade a capitular pela fome. Mas tal empreendimento estava condenado ao fracasso pelo facto do apoio militar de Carlos II a Paris permitir a existência de linhas de abastecimento à cidade.

É neste contexto que surge a Jacquerie. Este movimento desorganizado, sem objectivo comum unificador, que surge de forma espontânea, não resulta da miséria do campesinato, causada por factores como os elevados impostos régios, a desvalorização da moeda, os maus anos agrícolas, um sentimento anti-senhorial, gerado pela sua ineficaz ou inexistente acção perante os bandos de mercenários[14], que sem soldo, pilhavam o território, e o grande esforço económico dos camponeses para pagar os resgates dos seus senhores. Por mais desagradável que fosse o panorama vivido no período o camponês comum apresentava-se-lhe indiferente[15].
É um grupo minoritário de camponeses ricos do norte de França, que tem a noção de que os seus privilégios estavam ameaçados neste contexto[16], que incentivam as massas campesinas à revolta.
O movimento começa a norte de Paris, no vale do rio Oise[17], com o confronto entre camponeses e as forças do delfim, lá destacadas para o cerco a Paris, na aldeia de Saint-Léu-d’Ésserent, no fim de Maio. A revolta afecta as regiões da Normandia, Picardia, Champagne, Valois e Coucy[18], e consegue o apoio das cidades de Amiens e Meaux.
Com o passar do tempo a rebelião aumenta em número, pois pelos locais onde os revoltosos passavam juntavam-se os seus semelhantes, chegando aos milhares[19].
Tendo como líder um capitão de nome Guillaume Cale, a acção dos revoltosos, armados unicamente com instrumentos agrícolas, bastões, facas e com protecções de couro endurecido, consistia na perseguição e morte dos nobres, de suas famílias e na violação de damas nos vários locais onde os revoltosos passassem. Tais actos resultam da concepção criada pelo grupo embrião da insurreição de que os nobres eram a causa do péssimo estado em que o reino da França se encontrava, sendo que os restantes rebeldes afirmavam que se limitavam a reproduzir o que viam ser feito.
Mediante a instabilidade causada pela Jacquerie, Étienne Marcel decidiu apoiar-se nela[20], com o intuito de causar mais dificuldades ao delfim[21]. Esta aliança marca o alterar do rumo da revolta, pois gera o mal-estar entre Marcel e Carlos de Navarra, um nobre que receava a rebelião pela ameaça ao seu status quo e por esta se ter alastrado aos seus feudos na Normandia.
Apoiado com nobres franceses e estrangeiros, Carlos, o Mau, liderou a contra-jacquerie, que consistiu na repressão sangrenta da revolta popular com a eliminação dos seus participantes na batalha de Mello[22], a 10 de Junho, que foi antecedida pela tortura e morte do seu líder, depois deste ter sido preso pelos nobres quando julgavam que iria participar em negociações, e que teve ainda outro episodio de horror na morte ou aprisionamento de todos os habitantes de Meaux e na destruição dos seus edifícios, excepto a catedral[23].
Perante a eliminação dos seus aliados camponeses e o afastamento de Carlos II, e a sua consequente aliança com o delfim, Étienne Marcel encontrava-se numa situação grave, com Paris estava prestes a capitular, cercada pelas forças do regente e do rei Navarro. Jogando com a ambição de Carlos de Navarra de ser rei de França, Étienne Marcel lança a sua última cartada, optando por lhe entregar a cidade, a 31 de Julho, acto que não se realiza pois é morto pelos seus próprios apoiantes.

Depois desta contextualização histórica, uma reflexão acerca da Jacquerie permite-nos constatar que esta foi eliminada por um contra golpe militar não autorizado pela autoridade legítima, o rei, nem pelo seu substituto, o regente. Este facto vai contra a concepção agostiniana de jus ad bellum[24]. O jus in belum, outro princípio de Santo Agostinho, este sobre a condução da guerra de modo a mantê-la justa, foi também violado pela excessiva violência dos nobres sobre os camponeses revoltados, causando o horror aos olhos da cristandade[25], que desaprovava a luta entre cristãos, tentando-a limitar e eliminar.
Para além do choque da repressão da Jacquerie, houve outras consequências da revolta para o já debilitado reino de França, nomeadamente, a perda de ainda mais mão-de-obra nos campos e, consequentemente, mais fome e pobreza, notada, por exemplo, no caso dos nobres, pois estes deixaram de ter quem trabalhasse as suas terras.


[1] Texto número sessenta e quatro da compilação de textos dados pela docente da cadeira.
[2] Nome que deriva do termo “Jacques”, podendo ter tido origem no nome dado ao líder da revolta, Guillaume Cale, de Jacques Bonhomme ou por este termo ser utilizado para designar os camponeses das regiões onde ocorreu a Jacquerie.
[3] Apesar da proximidade linhagistica a posição de Eduardo III estava prejudicada pela lei sálica, pois nesta afirmava-se que o direito ao trono não podia ser dado e transmitido a mulheres, como era o caso de sua mãe.
Devido à complexidade desta questão aconselha-se a ver Philippe Contamine, La guerre de Cent ans, 3ª Edição, Paris, PUF, 1977, p.11, segundo o qual a lei sálica fora primeiramente utilizada no reinado de João II, o Bom, e José Maria Lacarra, Historia de La Edad Media, 3º Edição, Tomo II, Barcelona, Montaner Y Simon, S.A, Editores, 1971, p.273, onde se questiona a interpretação do estatuto de fragilitas sexus das mulheres, como incapazes de transmitir o direito ao trono.
[4] Vide. José Maria Lacarra, ob. cit, p.274.
[5] As derrotas sofridas tiveram consequenciais na moral e na confiança do povo na nobreza.
[6] Vide. idem, ibidem, p.279.
[7] Cf. Nöel Coulet, “Le Malher des Temps, 1348-1440”, Histoire de La France - Dynasties et Révolutions de 1348 à 1852, Direcção de George Duby, 2º Edição, Paris, Librairie Larousse, 1971, p.14.
[8] Título dado ao príncipe real.
[9] Cf. James Westfiled Thompson, Economic and Social History of Europe en Latter Middle Ages (1300-1530), New York, Frederik Ungar Publishing co., 1960, p.95.
[10] Tribuno burguês da Flandres, que aliando-se aos ingleses, tomou a administração deste território aquando da sua disputa entre a Inglaterra e a França na Guerra dos Cem Anos.
[11] Cf. José Maria Lacarra, Historia de La Edad Media […], p.280.
[12] A posição dos partidários de Marcel e Carlos de Navarra ao Delfim era de desafio total ao poder deste, como, alias, é constatável na utilização da permissão de cobrar impostos no reino, dada pela assembleia, como moeda de troca para o controlo do governo pelos estados gerais.
[13] Este movimento foi criado por Étienne Marcel para defender os seus interesses, a sua ascensão política, e não a burguesia parisiense como colectivo. Este partido, que adoptou as cores do município de Paris, azul e vermelho, continha nas suas fileiras indivíduos de grupos sociais de escalões inferiores à burguesia.
[14] Tem de se ter em conta que muitos nobres tinham morrido em Poitiers ou estavam cativos dos ingleses.
[15] Cf. Robert Fossier, Histoire Sociale de L´Occident Medieval, Paris, Armand Colin, 1970, p.343
[16] Cf. idem, ibidem, p.343.
[17] Cf. James Westfiled Thompson, ob. cit, p. 99.
[18] Cf. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. XIV, Lisboa e Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia, Limitada, [s.d.], p.129.
[19] Cf. Robert Fossier, ob. cit, p.345.
[20] Guillaume Cale também compreendeu que se a revolta quisesse sobreviver teria de ter apoio.
[21] Vide. Alain Demurger, Temps de crises temps d´espoirs, XIV - XV siècle, [s.l], Editions du Seuil, 1990, p.29.
[22] Realizou-se na proximidade de Clermont-en-Beauvaisis.
[23] Cf. Guy Fourquin, Les Soulèvemnts populairs au Moyen Age, 1º Edição, Paris, PUF, 1972, p.180.
[24] Que exclui o uso da força por particulares
[25] Apesar de alguns nobres, como o rei de Navarra, estarem a defender os seus bens e feudos tal não foi visto na cristandade como justificação às atrocidades perpetradas a não combatentes e prisioneiros. A anterior referência nesta analise à não destruição da catedral de Meaux parece nos indicar que pelo menos os lugares sagrados não foram profanados neste acto belicista.

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