terça-feira, 28 de junho de 2011

Crónica de Almançor, Sultão de Marrocos (1578-1603)

1 – Breves Referências Introdutórias à Obra

O texto em causa chegou até os nossos dias através de dois manuscritos anónimos, um existente na Biblioteca Nacional e o segundo no Arquivo da Cada do Cadaval[1]. O primeiro dos quais foi escrito por um secretário que se baseou nos apontamentos do autor, com este a fazer alguns acrescentos e rectificações[2], especialmente nomes de pessoas e de localidades, controlando assim a produção do texto. O segundo exemplar é uma cópia, tosca e cheia de erros de transcrição, do primeiro.
A crónica, dedicada ao filho mais velho do autor, Aires de Saldanha[3], era antes da publicação da fonte numa edição critica e anotada um texto sem título[4].

2 - Papel do Historiador

Passando para a análise do papel de historiador, temos de ter em consideração que António Saldanha, não sendo um cronista profissional, casos de Gomes Eanes de Zurara e de Fernão Lopes, que tinham como uma das suas principais actividades a produção de história, entra numa categoria de cronista por gosto próprio. Durante a sua estada em Marrocos, o autor registou, provavelmente, numa espécie de diário os acontecimentos[5] políticos que considerou mais importantes do reino magrebino, ocupando depois algum do seu tempo no final de vida a tratar da passagem do texto escrito para a fonte em análise, isto porque “o pensamento deste papel olha a maiores fins”[6]. Fins estes ligados a “lembranças bem recebidas de ministros superiores” que o “obrigaram a escrever”[7], ou seja, o interesse informativo para os conjurados sobre o estado geopolítico de Marrocos levou a este esforço literário por parte de António de Saldanha. Mediante isto podemos chegar à conclusão que o autor não estava limitado pelo círculo dos conjurados na sua produção desta obra, como os cronistas geralmente estão pelo seu empregador.

Na sua introdução António Saldanha afirma que tem por “fim principal a verdade”[8], quando se refere a ter de inserir na sua obra breves referências à batalha de Alcácer-Quibir e aos seus momentos imediatamente subsequentes, contendo esta curta introdução informações que podiam esbarrar com o que outros autores afirmavam.
Acreditamos que a verdade fosse um aspecto que prezasse, já que afirma a “lembrança dos bons e maus sucessos por que passou cada homem no curso de sua vida”[9]. Esta citação torna-se compreensível no contexto reflexivo em que se insere, pois é provavelmente resultante da auto-análise por parte deste experiente indivíduo, no inverno da sua existência, da vida humana como composta de duas peças indissociáveis, os aspectos positivos e negativos, que no fim de contas formam o total, a verdade.

O autor tem a noção que deixa um registo para a posterioridade, umas memórias, mas não parece que tenha tido alguma pretensão de elaborar uma obra historiográfica propriamente dita. Com a sua experiência de vida constata que grandes feitos ficaram por contar por morte dos seus obreiros e que a dedicação de outros ao registo de tais tarefas preserva o exemplo a seguir, independentemente da função e estatuto do individuo[10]. A preocupação em preservar os bons feitos insere-se numa linha mestre do trabalho de historiador, mas não é, na nossa opinião, suficiente para afirmar que houvesse uma consciência do desempenhar deste papel.


[1] Cf. idem, ibidem, p.XCVII.
[2] Cf. idem, ibidem, p.XI.
[3] Como é apreciável em “E porque, Aires de Saldanha, desejei pôr-vos esta lembrança diante dos olhos (…) Quis fazer-vos esta memória” (António de Saldanha, Crónica de Almançor, Sultão de Marrocos (1578-1603), estudo crítico, introdução e notas por António Dias Farinha, trad. francesa por Léon Bourdon, Lisboa, Instituto de Investigação Cientifica Tropical, 1997, Introdução do Autor, p.3.)
[4] Cf. Cf. António Dias Farinha, “Introdução”, ob.cit., p.XI.
[5] Cf. idem, ibidem, p.XI.
[6] Cf. António de Saldanha, Crónica de Almançor, Sultão de Marrocos (1578-1603), estudo crítico, introdução e notas por António Dias Farinha, trad. francesa por Léon Bourdon , Lisboa, Instituto de Investigação Cientifica Tropical, 1997, Introdução do Autor, p.3
[7] Cf. idem, ibidem,p.3.
[8] Cf. idem, ibidem,p.5.
[9] Cf. idem, ibidem,p.3.
[10] Aspectos constatáveis na seguinte afirmação: “E como não é a todos concedido que (…) cheguem jubilados a os poderem contar nos seus lares e se acabem as vidas tam limitadas em seus naufrágios ficam os sucessos delas, ainda que digno de memória pêra exemplo, sepultados com seus donos. E parece que com este temor tomaram grandes homens a pena na mão pêra contarem não só o que lhe aconteceu em suas maiores cousas, mas também a rezão delas, uns como grandes administradores das facções, outros como companheiros nas alheas.” (António de Saldanha, Crónica de Almançor, Sultão de Marrocos (1578-1603), estudo crítico, introdução e notas por António Dias Farinha, trad. francesa por Léon Bourdon , Lisboa, Instituto de Investigação Cientifica Tropical, 1997, Introdução do Autor, p.3)

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