domingo, 10 de abril de 2011

Expugnatione Lyxbonensi - Relato Oficial da Conquista de Lisboa (Parte III)

Restauração e Eleição do Bispo de Lisboa

A restauração da Sé de Lisboa e a eleição do seu Bispo presentes nesta carta-relatório não pode ser visto como um acto isolado. É na verdade mais um episódio do longo conflito político-religioso vivido entre Portugal e Leão e Castela, e entre Braga e Santiago de Compostela.
As sementes desta contenda vêm da restauração das dioceses na reconquista. A estabilidade política e o desenvolvimento religioso na Península Ibérica permitiram a restauração da diocese de Braga, em 1071, e de Toledo, em 1085[1]. Estas duas competiam entre si, com Braga a procurar recuperar o título de Metropolita[2] e Toledo a querer manter o seu predomínio eclesiástico no reino de Leão e Castela.
A conflituosidade entre estas duas cabeças acentua-se com a associação de Braga a um poder emergente, o Condado Portucalense, tornando-se esta disputa numa extensão dos conflitos políticos entre este condado e o reino de Leão e Castela[3].

O primeiro foco de conflito gerou-se durante a administração do primeiro bispo de Braga, D. Pedro (1072-1092), que rivalizando com Bernardo de Toledo, legado papal[4] e “Primaz das Espanhas”, perde a administração dos bispados galegos sufragâneos de Braga. Esta contenda acaba perdida, devido à obtenção do estatuto de Metropolita por D. Pedro das mãos de um anti-papa de Ravena, sendo este bispo logo depois deposto e enviado para um mosteiro[5]. Entre 1092 e 1099 a sede encontrou-se vacante, tornando-se bispo um monge francês beneditino de nome Geraldo, que obtém o palio de metropolita numa viagem a Roma, em 1103, presumivelmente acompanhado do conde D. Henrique[6], estendendo a sua jurisdição às dioceses de Tui, Orense, Modonhendo, Astorga, Porto, Coimbra Viseu e Lamego[7].
Com o aumento da influência de Braga, Diego Gelmirez, Bispo de Santiago de Compostela, manda roubar as relíquias dos santos da Sé Bracarense, deixando esta urbe de ser um ponto de atracção dos peregrinos[8]. O papa Pascoal II recriminou “com a maior diplomacia a provocação de Gelmirez [9], receando o poder e prestígio deste na cristandade, sendo que no mesmo período passou a referir-se ao Arcebispo de Braga como o “bispo da Metrópole de Braga”, evitando assim conflitos com o arcebispo de Toledo. Em 1108 falece D. Geraldo, subido ao cargo o anterior bispo de Coimbra, D. Maurício Burdino, que ao perder essa mesma diocese para Toledo, alia-se a Gelmirez, e reclama para si o bispado de Leão, pertencente a Toledo, aquando da captura do Arcebispo Bernardo por Afonso I de Aragão. Como resposta a este gesto, o Arcebispo toledano suspende-o[10]. A viagem a Roma de D. Geraldo em 1114, faz-se com o intuito de fazer retroceder a confirmação papal desta decisão, conseguindo ainda subtrair-se do poder da diocese de Toledo, ficando dependente apenas da Santa Sé, e obter como novas dioceses sufragâneas Zamora e Coimbra.
Entretanto a aliança com Gelmirez não se revela proveitosa para Braga. Este bispo desafia a administração bracarense mandando reunir um sínodo com os bispos de Tui, Orense, Lugo e Porto, sufragâneos de Braga[11]. A deposição do arcebispo Maurício, após a sua eleição como anti-papa, cria descrédito a Braga e conflitos com as suas dioceses sufragâneas[12], que são aproveitados por Gelmirez, em 1118, para obter de Pascoal II a dignidade Metropolita de Braga, que só não ocorre por morte do papa. A chegada à cena do novo arcebispo de Braga, D. Paio Mendes, intensifica os conflitos no ceio do Condado Portucalense, incompatibilizando-se de imediato com a política galega de D. Teresa[13], e apoiando os seus opositores, D. Urraca, e mais tarde o Infante Afonso Henriques, do qual obtêm as funções de Chanceler e a ampliação dos coutos de Braga. Diego Gelmirez, reforça a sua posição obtendo o estatuto de legado pontifício para as metropoles de Braga e Compostela, e conseguindo, em 1124, de Honório II a dignidade de Metropolita in perpetumm e o título de Arcebispo[14]. Como resposta, D. Paio ausenta-se do concilio convocado pelo compostelano e leva o jovem Afonso Henriques à catedral de Zamora, no dia de Pentecostes de 1125, arma-se este em cavaleiro pelas suas próprias mãos[15].
Com a morte do Bispo do porto, D. Hugo, aliado de Compostela, e de Diego Gelmirez, em 1139, o equilíbrio de forças neste conflito mudou. D. João Peculiar, depois de ser Bispo do Porto ascende ao arcebispado de Braga, impondo imediatamente a sua autoridade sobre Coimbra. Este Arcebispo de Braga fica na história pelo seu papel na manobra diplomática do rei português, tendo sido fundamental no Tratado de Zamora e na elaboração da Clavis regni caelorum[16], efectuando sete viagens a Roma para tratar de questões eclesiásticas[17], aproveitando sempre a ocasião para engrandecer a imagem do monarca português.

Mediante estes factos, e mantendo em mente que a sé de Lisboa pertencia à Metrópole de Mérida, cujos direitos tinha sido adquiridos por Santiago de Compostela, o acto de restaurar a diocese de Lisboa, em 1147, e na mesma cerimónia sagrar os bispos de Lamego, de Viseu[18] e de Lisboa, apresenta-se como um desafio à Metrópole compostelana[19]. Braga ao tomar a iniciativa de restaurar a diocese de Lisboa apresentando já os seus limites transmite a ideia aos leitores desta epístola da sua capacidade, organização e empenho religioso na reconquista.

Este longo e tortuoso conflito entre arcebispados termina em 1199 por acção de Inocêncio III, que atribui as dioceses em disputa do seguinte modo: Braga teria Porto, Coimbra, Viseu, Astorga, Tui, Mondonhedo, Orense, e Lugo; Compostela ficaria com Lisboa, Évora, Lamego e Guarda, Ávila, Salamanca, e Zamora[20]. O que significa que apesar de saradas as feridas, até à correspondência geográfica dos arcebispados com os territórios nacionais a que pertencem ainda demorará alguns séculos, até ao reinado de D. João I.


[1] Cf. Pe Miguel de Oliveira, História Eclesiástica de Portugal, 2ª Edição, Lisboa, Europa-America, 2001, p.96.
[2] Durante o período romano a Península encontrava-se dividida em cinco províncias, que serviram de base à divisão eclesiástica em cinco metrópoles, que consequentemente se dividiam em dioceses. Com o progresso da Reconquista tentou-se restabelecer estas Metrópoles e as suas dioceses sufragâneas.
[3] A restauração da sé de Braga e os conflitos aqui referidos iriam criar um ambiente favorável à independência do Condado Portucalense.
[4] Cf. José Marques, “Braga”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal. Direcção de Carlos Moreira de Azevedo, Vol. I - A-C, Lisboa, Circulo de Leitores, 2000, p.224.
[5] Cf. Idem, ibidem, p.224.
[6] Cf. Humberto Baquero Moreno, “A Igreja Bracarence na Independência de Portugal”, in 2º Congresso Histórico de Guimarães, Actas do Congresso, Vol. 4 - Sociedade, Administração, Cultura e Igreja em Portugal no Século XII., Guimarães, Universidade do Minho, 1997, p.8. Ao conseguir uma Sé Metropolita autónoma de outras do reino de Leão e Castela, conde D. Henrique dá um grande paço na sua política independentista.
[7] Vide. Carl Edrman, O Papado e Portugal no Primeiro Século da História Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 1935, pp.16-18.
[8] Cf. José Marques, ob.cit., p.225. Até ao roubo das relíquias dos santos (Silvestre, Susana, Cucufate e S. Frutuoso) as relações com Compostela tinham sido amigáveis.
[9] Cf. Humberto Baquero Moreno, ob.cit., p.9.
[10] Não nos podemos esquecer de que era o legado papal e “Primaz das Espanhas”.
[11] Cf. Idem, ibidem, p.9.
[12] O Porto pretendia aumentar os seus limites geográficos e Coimbra aliava-se com Gelmirez (Carl Erdmann, “O Papado […], pp.25-27).
[13] Chegando em 1122 a ser preso por D. Teresa (Humberto Baquero Moreno, ob.cit., pp.10-11).
[14] Cf. Idem, ibidem, p.11. A transferência destas dignidades é feita da Metrópole de Mérida, que ainda se encontrava em posse dos mouros (Cf. Pe Miguel de Oliveira, ob.cit., p.97).
[15] Cf. Idem, ibidem, p.11. À semelhança do que Gelmirez tinha feito com Afonso Raimundes, numa das manobras que melhor exemplificam a associação de Compostela ao poder real de Leão e Castela.
[16] Carta da qual o monarca não consegue obter o reconhecimento do título de rei, mas alcança o eufeudamento à Santa Sé, em troca do pagamento de quatro onças de ouro anuais, comprometendo-se a não receber outro senhorio espiritual. O que em termos práticos equivale a uma subtracção do Condado ao poder Imperial de Afonso VII. (Pª Miguel de Oliveira, ob.cit., p.86).
[17] Como a absolvição de penas canónicas auferidas da recusa em submeter-se à Toledo em 1145 e 1149.
[18] Cf. José Mattoso, ob.cit., p.76. Dioceses essas em disputa entre as Metrópoles de Braga e Compostela.
[19] Braga irá mais tarde restaurar Évora, em 1165, e Silves, em 1189, ignorando de novo os direitos Compostela.
[20] Cf. Pe Miguel de Oliveira, ob.cit., p.98.

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