domingo, 24 de abril de 2011

Expugnatione Lyxbonensi - Relato Oficial da Conquista de Lisboa (Parte V)


A Comunidade Moçárabe de Lisboa

Após a conquista islâmica de grande parte da Península Ibérica, a grande maioria da população autóctone converteu-se ao Islão, os restantes, que se mantiveram fieis ao cristianismo, encontravam-se abrangidos pelo regime jurídico da dhimma (protecção), que em conjunto com o pagamento de certos tributos, como a jizya, lhes permitiu manter a sua religião e uma substancial autonomia comunitária[1]. A situação destes cristãos sob domínio islâmico, os moçárabes, variava entre fases de estabilidade e de maior descriminação e de tensão social e religiosa, conforme os progressos da Reconquista e a sua interferência em questões político-militares dentro da unidade islâmica peninsular[2].
Segundo alguns estudiosos[3], a população moçárabe de Lisboa em 1147 seria muito expressiva, chegado talvez a metade do seu total, facto que explicaria a rápida implantação do cabido e de outras estruturas religiosas em Lisboa e a falta de conflitos na urbe durante a administração dos primeiros três Bispos[4].

Depois desta breve introdução, passamos à análise do texto e às suas referências aos moçárabes. A primeira das quais ocorre durante a descrição de Lisboa, quando Raul nos informa da inexistência de uma religião obrigatória na cidade[5], facto que critica e que segundo José Garcia Domingues, que corrobora o seu raciocínio com outras fontes, possivelmente se referirá à convivência mais ou menos pacífica de árabes, berberes, muladis e moçárabes neste espaço[6].
A segunda alusão dá-se, também, durante a descrição da cidade, sendo referidos os três mártires de Lisboa, Veríssima, Máximo e a virgem Júlia, e a sua igreja de culto em Campolide[7]. Cremos que esta informação tenderia a ser conservada pelos próprios moçárabes, que se mantinham muito fiéis às suas crenças, tentando conservar a sua identidade de grupo enquanto minoria sob alçada do Islão. Esta informação foi presumivelmente usada por Raul para enriquecer o seu texto com detalhes históricos.
A terceira menção à comunidade moçárabe ocorre, aquando do apelo à rendição dos mouros, com a presença de um Bispo no alto das muralhas, acompanhando o Alcaide e os homens mais importantes da Lisboa mourisca[8]. Outra menção a este Bispo é feita aquando da sua morte pelas tropas cruzadas, que fazem a segunda entrada na urbe amuralhada[9]. É possível que este bispo, que é descrito como sendo muito idoso, tenha sido o mesmo que foi colocado por Afonso VI, no ano de 1095 aquando do curto período de administração deste território pelo Imperador, ou que seja um alto representante da comunidade moçárabe ou um clérigo moçárabe, ou mesmo, se ignorarmos o emprego do termo episcopus e partirmos do pressuposto de que Raul ignora a inexistência de um corpo sacerdotal no Islão, um Imã.
Por fim, a última referência ocorre na descrição dos mouros da cidade atacados pela peste após a sua conquista. O autor refere que “abraçavam-se ao sinal da cruz e beijavam-no, confessavam que Maria, cheia de bondade, é a bem-aventura da Mãe de Deus”, fazendo “invocações a Maria boa, boa Maria[10]. Não podemos sem mais dados saber se estes indivíduos realmente eram cristãos ou se tentavam com estes gestos manter-se vivos perante a brutalidade dos cruzados com os ocupantes da cidade.

Para finalizar, Maria João Branco propõem que Raul, estando presente no longo cerco a Lisboa, tendo contactado com os centros de poder cristãos, demonstrando conhecimento da filosofia árabe[11], tendo acesso à documentação da chancelaria portuguesa, não se refira directamente à comunidade moçárabe da cidade, não por falta de conhecimento, mas por algum problema com este grupo[12]. Talvez o papel que os moçárabes desempenharam neste cerco tenha sido prejudicial aos cristãos, talvez tenham mesmo ajudado a defender a cidade…sobre isto apenas podemos especular.


[1] Vide. Maria Filomena Lopes de Barros, “Moçárabes”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, Direcção Carlos Moreira Azevedo,  Coordenação de Volume Ana Maria Jorge [et al.], Vol. III, J-P, Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, p.246.
[2] Cf. Manuel Clemente, ob.cit., p.95.
[3] Cf. Idem, ibidem, p.95 e Maria Filomena Lopes de Barros, ob.cit., p.248.
[4] Cf. Maria João Branco, “Reis, Bispos e Cabidos […], p.56 e Manuel Clemente, ob.cit., p.95. Este último autor menciona que Vieira da Silva, ao estudar a evolução das freguesias de Lisboa, teria chegado à conclusão que as vinte e sete freguesias do período pós-reconquista podiam ter tido origem no período islâmico.
[5] Cf. A Conquista de Lisboa aos Mouros, p.79.
[6] Cf. Manuel Clemente, ob.cit., p.95.
[7] Cf. A Conquista de Lisboa aos Mouros, p.79.
[8] Cf. Idem, ibidem, p.93.
[9] Cf. Idem, ibidem, p.139. A morte deste religioso, e a mais que provável morte de outros moçárabes, perpetrada por esta horda desorganizada, ocorre pela ignorância destes da realidade da península, que não saberiam nem estaria interessada em distinguir este grupo dos seguidores de Maomé.
[10] Cf. Idem, ibidem, p.143. Convém lembrar que os moçárabes não eram adopcionistas, ou seja, não acreditavam que Jesus nascera humano e que mais tarde teria sido adoptado por Deus como seu filho. Essa ideia errónea deriva da perda de informação na tradução dos textos sagrados para o árabe.
[11] Visível aquando da análise da resposta do ancião mouro aos apelos do Arcebispo de Braga.
[12] Cf. Maria João Branco, “A Conquista de Lisboa Revisitada […], p.132, nota 64.

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