A Fixação de Clérigos Cruzados após a Conquista de Lisboa
Sabendo antecipadamente que vários cruzados se fixaram em Portugal após a conquista de Lisboa, através das doações de terras feitas pelo monarca na Atouguia da Baleia[1], em Almada, Alhandra e em Vila Franca de Xira[2], ficamos com curiosidade em saber se entre eles se contavam clérigos. Apesar de se ter perdido a maioria da documentação da Sé de Lisboa, correspondente às primeiras três décadas pós-conquista, sobreviveram alguns diplomas que nos auxiliaram nesta questão.
Após o rei ter doado, em 1149, trinta e duas casas, com vinhas, olivedos e figueirais, em Marvila, à Sé de Lisboa, o bispo D. Gilberto de Hastings começou a organizar o seu cabido, definindo numa carta, de um de Janeiro de 1150, as suas dignidades e prebendas[3], e atribuindo as casas doadas pelo monarca aos seus cónegos. O que nos importa neste documento é a lista de testemunhas, que inclui os nomes, com adjectivos pátrios ou topónimos, e as funções destes clérigos[4]. Nomes esses que são na sua maioria estranhos a península, como o de Adam[5], de Oderious, de Nicolaus, de Rosardus[6], do Deão Roberto, dos arcediagos Bartolomeu e Mateus, do chantre Durandus e do tesoureiro Menelaus[7]. No total dezoito dos trinta e um cónegos são decididamente francos ou ingleses, com Bal, de Kent, de Douai de Rumenel como topónimos locativos.
Em documentos da sé de Lisboa de 1150, 1156 e 1159 aparecem-nos o arcediago Arnulphus Fornensis, um Gualterius Flandrensis, um Gualterius Hastingiensis, um Jacob e um Reinaldo[8]. Em representação de Lisboa num sínodo de Braga, em 1148, está um arcediago de nome Eldebredo[9]. No Livro das Calendas da Sé de Lisboa é mencionado um Heringus, pai do primeiro deão da Sé pós 1147, e Roberto, um cónego da Sé irmão de D. Gilberto[10]. E obviamente, não nos podemos esquecer que ambos os autores De Expugnatione LyxbonensiI e do Indiculum Fundationis[11] eram clérigos cruzados. Em suma, teriam ficado no total mais de cento e cinquenta clérigos da armada cruzada[12].
Ainda sobre o teor religioso da presença cruzada é importante referir que aquando da organização do cabido da Sé, D. Gilberto fâ-lo segundo os moldes que conhece, anglo-normandos, facto visível na terminologia empregue nas dignidades, como a de “precentor”¸ invés de chantre, e de “cancellarius”, invés de mestre-escola[13].
Outro aspecto interessante foi adopção do rito de Salisbúria[14] na Sé, que se praticou até 1538. Este rito data do século VII, da autoria de Santo Agostinho de Cantuária, é uma adaptação da liturgia romana que difere apenas em certos aspectos dela, nomeadamente no uso do branco para cor de celebração durante a Quaresma, na cobertura com cor de cinza das estátuas da igreja nesse mesmo período, no intróito rezado antes e após o Glória, na preparação do cálice antes do Evangelho durante o Gradual, na inexistência da oração do lavabo, entre outras subtilezas[15].
Pelo que se observou, o número excepcionalmente elevado de cruzados radicados em Lisboa e nas suas imediações com privilégios especiais, comprovam que o monarca português cumpriu o pacto estabelecido com os “francos”, e que em conjunto com a escolha de um Bispo cruzado, deve ter transmitido ao resto da cristandade uma imagem muito positiva de si e das suas valências como combatente do infiel.
[1] Cf. Mário Jorge Barroca, “Da Reconquista a D. Dinis”, in Nova História Militar de Portugal. Direcção de Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira, Vol. I, Coordenação de Volume José Mattoso, Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, p.44.
[2] Cf. Paulo Lowndes Marques, “Intervenção Britânica na Conquista de Lisboa 1147”, in 2º Congresso Histórico de Guimarães, Actas do Congresso, Vol. 2 - A Política Portuguesa e as Relações Exteriores., Guimarães, Universidade do Minho, 1997, p.57 e Maria João Branco, "A Conquista de Lisboa Revisitada […], p.132.
[3] Cf. Ruy de Azevedo, ob.cit., p.23.
[4] Cf. Idem, ibidem, p.24.
[5] Cf. Maria João Branco, "A Conquista de Lisboa Revisitada” […], p.134.
[6] Cf. Idem, ibidem, p.124.
[7] Cf. Ruy de Azevedo, ob.cit., p.25.
[8] Cf. Idem, ibidem, p.26
[9] Cf. Idem, ibidem, p.26.
[10] Cf. Maria João Branco, "A Conquista de Lisboa Revisitada” […], p.135.
[11] Escrito por um autor anónimo, que terá sido um monge teutónico que permaneceu em Lisboa, fazendo parte da primitiva comunidade de religiosos que se instalaram no mosteiro de S. Vicente de Fora (Armando de Sousa Pereira, “Guerra e Santidade: O Cavaleiro-Mártir Henriques de Bona, e a Conquista de Lisboa”, in A Nova Lisboa Medieval, Coordenação do Instituto de Estudos Medievais, Lisboa, Edições Colibri, p.54).
[12] Cf. Manuel Clemente, “Lisboa”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal. Direcção de Carlos Moreira de Azevedo, Vol. III - J-P, Lisboa, Circulo de Leitores, 2001, p.96.
[13] Cf. Maria João Branco, “Reis, Bispos e Cabidos: A Diocese de Lisboa Durante o Primeiro Século da sua Restauração”, in Lusitânia Sacra, 2º Série, Tomo X, 1998, p.60.
[14] Pierre David contesta esta acercção e justifica-a (Vide. Études Historiques sur la Galicie et Portugal du Vle au XIIe Siècle, Lisboa, Portugália, pp.560-561).
[15] Cf. Paulo Lowndes Marques, ob.cit., p.57-58.
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