terça-feira, 12 de abril de 2011

Expugnatione Lyxbonensi - Relato Oficial da Conquista de Lisboa (Parte II)


Objectivos e Contexto Histórico da Fonte

Esta epístola goza de uma singularidade no panorama das fontes medievais portuguesas, pois ao contrário da maioria desses documentos (que são muitas vezes sintéticos na sua abordagem, excessivamente simplificadores dos acontecimentos, desprovidos de coordenadas geográficas e espaciais, contaminados por aspectos do divino e do maravilhoso, centralizando às acções em apenas um protagonista), este relato do cruzado caracteriza-se pela objectividade, pela preocupação pelo pormenor, pela identificação das personagens, pela presença de dados temporais[1], espaciais e históricos, intercalados por “momentos profundamente poéticos, ricos de sugestão, discursos e sermões pronunciados por individualidades eclesiásticas, políticas e militares”[2], e por aspectos de particular interesse, como a descrição da restauração da diocese de Lisboa, e a noção precisa dos seus limites e o tratamento dado à figura do rei[3].
Estes aspectos da carta obrigam os especialistas a pôr em causa o seu carácter de criação espontânea. Partindo deste pressuposto e contextualizando a acção descrita no relato com o reinado de D. Afonso Henriques obteremos o móbil para a sua feitura.

O monarca fundador é em 1147 um chefe de um reino não reconhecido pela única entidade legítima de o fazer na cristandade medieval, o Papado. Como tal, enveredou numa estratégia que procurou o apoio e reconhecimento do papado, baseado no sucesso dos seus feitos bélicos contra os mouros, na diplomacia com Roma, e nas estreitas relações com a Ordem de Cister, com os Cónegos Regrantes de Santo Agostinho e com a Ordem do Tempo[4].
Com o advento da Segunda Cruzada, declarada por Eugénio III, em consequência da queda do Condado Latino de Edessa em 1144, o rei de Portugal prepara cuidadosamente a conquista de Lisboa, contando com o apoio antecipado de cruzados[5] e conquistando previamente, numa acção furtiva no mês de Abril de 1147, a vila que abria as portas ao estuário do Tejo, Santarém. O recurso de D. Afonso a uma frota cruzada na tomada de Lisboa resulta da necessidade de um grande contingente humano para a sua conquista, servindo também para associar os seus actos belicistas ao forte espírito de cruzada que varria a cristandade de então. É com este intuito que o monarca manda fazer esta fonte[6].
Esta epístola é um acto de propaganda política[7] e de afirmação régia de D. Afonso I, que terá sido provavelmente composta através de apontamentos escritos in loco durante o cerco a Lisboa e de um trabalho de redacção final num scriptorium, no qual o autor teria acesso a documentos de chancelaria régia, transcrições de discursos e sermões[8], e várias obras, entre os quais se destacam a Collectanea Rerum Memorabilium, de Solino, o Liber Testamentorum e a Bíblia[9].

Um dos aspectos mais difíceis de determinar sobre esta fonte são os resultados que ela obteve, ou seja, saber se o texto foi amplamente divulgado na cristandade. O seu carácter epistolográfico torna impossível determinar o impacto da sua mensagem nos leitores, já que nada se sabe sobre a difusão de cópias. De qualquer modo, a multiplicidade de testemunhos presenciais e a inclusão da conquista em anais e crónicas nos séculos seguintes[10], demonstram o alto valor que os contemporâneos deram a esta empresa de carácter internacional.

Autoria da Fonte

Esta epístola inicia-se com uma saudação, que inclui o nome do seu autor e do seu destinatário, com o respectivo endereço, de forma abreviada[11].
Crê-se que o autor da carta seja um presbítero normando, que viajou na frota cruzada e que se fixou no nosso território, de nome Raul, ligado aos meios presmontratenses, que fundou um ermitério em Lisboa, que dou ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra[12]. Já o destinatário seria um clérigo de Glanville, da abadia premonstratente de Suffolk[13], de nome Osberto, familiar de Hervey de Glanville, um dos condestáveis dos cruzados ingleses[14].
Outras hipóteses menos credíveis sobre a autoria incluem a de Ranulfo de Glanville, irmão de Herveu de Glaville, um justiceiro da coroa inglesa, Sheriff de Yorkshire[15], e cruzado inglês, que esteve pelo menos duas vezes na Palestina[16], e um deão da Catedral de Lisboa, de seu nome Roberto, que teria facilidade pelo seu ofício a aceder a vários informações mencionados na fonte[17].


[1] Cf. Idem, ibidem, p.173.
[2] Vide. João Paulo Mota “A Conquista de Lisboa aos Mouros: Possíveis Ligações Textuais entre as Cartas dos Cruzados” in A Nova Lisboa Medieval, Lisboa, Edições Colibri, 2005,p.48.
[3] Retratando-o como um líder decidido, um bom exemplo de moderação, de complacência para com os vencidos e os vencedores (seguindo assim o modelo de tolerância cristã), de justiça e de empenho na reconquista, prudente e conciliador com os cruzados, encontrando-se irado apenas com os conflitos internos destes (Maria João Branco, “A Conquista de Lisboa Revisitada: Estratégias de Ocupação do Espaço Físico, Político e Simbólico", in 2º Congresso Histórico de Guimarães, Actas do Congresso, Vol. 2 - A Política Portuguesa e as Relações Exteriores., Guimarães, Universidade do Minho, 1997, p.128).
[4] Cf. Maria João Branco, “Introdução”, ob.cit., p.23. As primeiras duas instituições mencionadas foram ordens religiosas fundamentais na reforma da cristandade do século XII, e que em conjunto com os templários, baluarte da defesa da Terra Santa, tinham ligações preferenciais a Roma.
[5] Muitos historiadores concordam que o grande dinamizador e pregador da Segunda Cruzada, São Bernardo de Claraval, teve um papel importante na tomada de Lisboa. A sua acção deve ter-se reflectido na presença de um delegado seu nos contingentes “francos” e na existência de um acordo prévio com alguns cruzados para a conquista da cidade. Mediante alguns factos presentes no texto, como o conhecimento antecipado de Afonso Henriques da chegada dos cruzados, e o apoio intransigente dos flamengos ao rei português, julgamos que tais aspectos sejam prováveis (José Mattoso, D. Afonso Henriques, Lisboa, Circulo de Leitores, 2006, pp.175-176).
[6] Cf. Idem, ibidem, p.25.
[7] Similar ao uso dado à historiografia crúzia durante o reinado de Afonso Henriques.
[8] Cf. Idem, ibidem, p.11.
[9] Cf. Ruy de Azevedo, ob.cit., pp.15, 17-18.
[10]  Como a Crónica do Imperador Afonso, Chronicon Mundi de Lucas De Tuy, De Rebus Hispaniae de Rodrigo de Toledo (Maria João Branco, “Introdução”, ob.cit., p.28).
[11] “OSB[ERTO] de Baldr[eseia] R[andulfus] salutem”. Muito já foi escrito sobre que nome na saudação é que corresponde ao autor e ao destinatário, de tal modo que para o leitor interessado neste debate aconselhasse o artigo já citado de Ruy de Azevedo, no qual se expõe as ideias de outros estudiosos sobre este tema e se apresenta a opinião do próprio autor.
Na nossa opinião o que realmente importa saber deste tópico é que na epistomologia medieval, quando se dirige a um superior hierárquico, o destinatário era referido em primeiro lugar, o que faz com que o autor seja R e o destinatário Osb., além do mais tem mais lógica que só havendo referência a uma povoação (Bawdsey), essa seja do destinatário.
[12] Cf. Maria João Branco, “Introdução”, ob.cit., pp.28-29. As semelhanças entre os autores dos dois textos são demasiado numerosas para que se possa ignorar esta hipótese como a mais viável.
[13] Cf. Maria João Branco, “A Conquista de […], p.127.
[14] O que explica a descrição apologética desta personagem pelo autor, podendo mesmo ser o seu capelão (Ruy de Azevedo, ob.cit., p.15).
[15] Cf. José Mattoso, ob.cit., p.176.
[16] Vide. Josiah Cox Russel, “Ranulf de Glanville”, in Speculum, Vol. 45, No. 1, (Jan), 1970, pp.72.
[17] Referimo-nos ao discurso do Bispo do Porto, ao pacto de Afonso Henriques com os cruzados, às informações sobre a restaurada diocese de Lisboa, ao conhecimento correcto da multiplicidade religiosa de Lisboa no período da conquista e às diferenças doutrinais do Islão face ao Cristianismo (Maria João Branco, “Introdução” […], p.31).

Sem comentários:

Enviar um comentário