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Para compreender o aparecimento das Ordens Militares é necessário ter consciência das mudanças que se ocorreram no momento histórico da sua criação. Nomeadamente o surgimento do movimento cruzadístico, associado à reforma eclesiástica, do novo monacato de Cister, e do novo tipo de guerreiro, o miles Christi[1]. Este arquétipo de soldado luta em nome de Cristo contra os seus inimigos, combinando a actividade guerreira, do mundo laico, com a motivação religiosa[2]. Esta dualidade única está impregnada nos freires das Ordens Militares, que sob um hábito religioso, seguido um conjunto definido de preceitos registados em texto[3], praticam a guerra santa.
Após a criação, no início do século XII na Palestina, das primeira Ordens Militares, da Ordem do Templo e de São João do Hospital, surgiram pouco depois na Península Ibérica, com intuitos semelhantes, a Ordem de Santiago e a Ordem de Calatrava. A primeira, sobre a qual nos debruçamos neste estudo, terá se formado a partir de uma confraria de cavaleiros, criada em 1160, ligada aos cónegos regrantes de Santo Agostinho[4]. Mais tarde, deste embrião nascerá a Ordem de Santiago, reconhecida pelo rei Fernando II de Leão em 1170, e obtendo a aprovação papal de Alexandre III cinco anos depois[5].
Em Julho de 1172 inicia-se a presença desta Ordem em Portugal, com a doação de Afonso Henriques da vila de Arruda[6]. Poucos meses depois este mesmo monarca, aquando da estada do mestre da Ordem, D. Pedro Fernandez, em Coimbra, dou-a o castelo de Monsanto aos santiaguistas, estabelecendo uma série de condições para manter a lealdade da Ordem perante si[7]. Em 1186 D. Sancho I, preocupado com a “continuidade da defesa da linha do Tejo”[8], doa aos espatários o castelo de Alcácer do Sal e as vilas de Palmela, Almada e, de novo, Arruda[9], espaços que se iriam perder com o avanço almorávida em 1191[10]. Em 1193 D. Sancho demonstra a sua confiança na Ordem, apesar das suas derrotas militares, doando-lhes a torre e os paços da alcáçova de Santarém e, em 1194, o edifício de Santos-o-Velho[11].
As doações régias que se seguiram serviram de recompensa pelos sucessos belicistas da Ordem na conquista de extensos territórios do actual Alentejo e Algarve. Entre estas vilas e castelos doados contam-se os casos de: Alcácer do Sal, em 1217, Aljustrel, em 1235, Sesimbra, em 1236, Alfazar da Pena e Mértola, em 1239, Aiamonte, em 1240, e de Tavira, em 1244[12]. Em 1145 os espatários juntavam à sua administração o castelo de Cacela, o padroado das igrejas de Alcácer do Sal, de Palmela e de Alhandra, e algumas terras no termo de Santarém[13].
Com o fim da conquista do segundo reino da coroa portuguesa, em 1249, feito em grande parte com o apoio das Ordens Militares, nomeadamente dos santiaguistas[14], afastou-se da fronteira nacional a ameaça muçulmana. Assim, as Ordens Militares deixaram de cumprir a função para a qual tinham sido instituídas, começando assim uma nova fase da sua existência.
Nos anos de 1271-1272 as relações da Ordem com o rei português, D. Afonso III, pioraram. Tal deveu-se aos diferendos sobre o padroado das igrejas do Algarve e ao conflito gerado pelo comércio de produtos agrícolas pelos moradores de Mértola, levando assim à renúncia da Ordem das “doações de Tavira, Cacela, Castro Marim e seus termos em favor de D. Afonso III”[15]. O que na realidade o rei português pretendia com esta situação era, prosseguindo a sua política de centralização régia, começar a ter controlo sobre os numerosos territórios desta Ordem, cuja administração se centrava em Uclés no reino vizinho e rival de Castela e Leão[16].
Mapa 1 – Senhorios das Ordens Militares em Portugal após 1272.
Fonte – História de Portugal, Direcção e Coordenação de Volume de José Mattoso, Vol. II
A Monarquia Feudal (1096-1480), [Lisboa], Circulo de Leitores, 1993, p.212.
D. Dinis prosseguiu o esforço de centralização régia do seu pai, iniciando os processos de separação da Ordem Santiago e de Avis das respectivas casas-mãe em Castela, e criado a Ordem de Cristo aquando da supressão dos templários[17]. Lutando contra a autoridade de um mestre estrangeiro, que tenderia a prejudicar o governo do reino, D. Dinis pede ao papa autorização para eleger um mestre nacional, pedido esse que foi acedido com a bula Pastoralis officci, do papa Nicolau IV, de 1288, escolhendo-se para o cargo D. João Fernandes[18]. A pressão diplomática castelhana em Roma leva à revogação da decisão anterior e ao despacho de duas bulas confirmando esta invalidação pelos dois papas seguintes[19]. A postura do rei português parece então ter-se pautado pela obediência a esta decisão da cúria romana, até ao ano de 1314, no qual se inicia um período de interregno, de dois anos, na cadeira de S. Pedro. Assim, D. Lourenço Eanes é escolhido como novo mestre para o ramo nacional da Ordem de Santiago, mantendo-se, apesar desta provocação, os esforços diplomáticos com a Santa Sé para obter a desejada anuição[20]. A embaixada portuguesa de 1218, liderada por Manuel Pessanha e Vicente Anes, expõe a má gestão da Ordem pela administração de Uclés e salienta a legalidade da bula que aprovou o mestre nacional para a Ordem, não conseguindo no fim convencer o novo papa, João XXII[21]. Este mesmo pontífice perante o desafio do novo mestre português, Pêro Escacho, que mandou elaborar os primeiros Estabelecimentos portugueses, em 1227, firmando neles que a supervisão da Ordem ficaria a cargo da realeza nacional, decidiu que este diferendo devia ser resolvido com os arcebispos de Braga e Santiago de Compostela no papel de juízes[22]. Tal acção não surtiu efeito, tendo os espatários nacionais, mesmo não sendo reconhecidos oficialmente, cortado todas as suas ligações ao ramo castelhano. A confirmação oficial desta “independência” dá-se em 1452 com a bula Ex apsotolice sedis de Nicolau V, já com a administração da Ordem nas mãos de familiares do rei[23].
Como foi referido anteriormente, com o fim da reconquista cessam as funções guerreiras das Ordens Militares, iniciando-se uma nova etapa na vida destas entidades religiosas. No caso específico da Ordem de Santiago, temos uma instituição com uma grande riqueza fundiária, possuindo enormes extensões de propriedade agrária[24] e uma ampla fronteira marítima, que facilitou o seu comércio com a Europa setentrional, e deu acesso à altamente rentável exploração salífera do Sado[25].
Esta sua dimensão senhorial é um atractivo para nobres ávidos de riqueza, que para além de garantirem a sua subsistência, asseguravam um tratamento privilegiado face ao foro civil em diversos crimes, como o de assassínio e de roubo[26].
Acompanhado estas tendências decorre a gradual laicização da Ordem de Santiago e a sua progressiva dependência do poder régio. O primeiro destes aspectos está patente nas alterações à prática do casamento, que autorizado desde 1175 tem os seus condicionantes modificados radicalmente, tornando-se menos exigente, e no fim do voto de pobreza, que principio com o fim de jejuns regulamentados na normativa, permitindo-se depois que os freires pudessem possuir bens móveis e imóveis e outros artigos que se associam geralmente aos cavaleiros seculares[27].
A subordinação ao poder do monarca pelos santiaguistas inicia-se no reinado de D. Dinis com o estabelecimento de 1227. A partir deste momento, os soberanos iram ter influência na escolha dos mestres[28], tendo altos membros da Ordem na sua corte, que compareceram em cerimónias públicas[29], sendo também testemunhas em diplomas[30] e em casamentos[31], exercendo ainda cargos de prestígio, como o de embaixador[32], mantendo-se sempre a fidelidade da Ordem ao monarca em guerras, como a guerra civil de 1319-1324 e a guerra com Castela de 1336-1339[33]. Com a passagem do título de mestre para os membros da família real portuguesa, no século XV, e mais tarde centrando-se apenas na figura do monarca, com D. João III, a sujeição da Ordem de Santiago à coroa termina[34].
[1] Cf. Luís Adão da Fonseca, “Ordens Militares”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, Direcção de Carlos Moreira de Azevedo, Vol. I - J-P, 1ª Edição, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, p.334.
[2] Cf. Idem, ibidem, p.335.
[3] Cf. Paula Pinto Costa, “Ordens Militares e Fronteira: um Desempenho Militar, Jurisdicional e Político em Tempos Medievais”, in Revista da Faculdade de Letras – HISTÓRIA, Porto, III Série, Vol. 7, 2006, p.80.
[4] Cf. Isabel Lago Barbosa, “A Ordem de Santiago em Portugal” in As Ordens de Cristo e de Santiago no Início da Época Moderna: A Normativa, Militarium Ordinum Analecta, Nº2, Direcção de Luís Adão da Fonseca, Porto, Fundação Engenheiro António de Almeida, 1999, pp.114-115.
[5] Cf. Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal. Vol. I - Livro I - Desde a Fundação da Monarquia até ao Fim do Reinado de D. Dinis (1325). Nova Edição de Damião Peres, Lisboa-Porto, Livraria Civilização, 1967, p.149.
[6] Cf. Idem, ibidem, p.149.
[7] Cf. Humberto Baquero Moreno, “As Origens Militares na Sociedade Portuguesa do século XV: O Mestrado de Santiago”, in Revista da Faculdade de Letras - HISTÓRIA, Série II, Vol. 14, 1997, p.66.
[9] Esta última vila tinha entretanto voltado às mãos da facção muçulmana (José Luís Martim, Origenes de La Orden Militar de Santiago (1170-1195), Barcelona, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 1974, p.83).
[12] Cf. Pe Miguel de Oliveira, História Eclesiástica de Portugal, 2ª Edição, Lisboa, Europa-America, 2001, p.110. Em 1210, pelo testamento de D. Sancho I, sabe-se que os espatários já tinham incluído, de novo, Palmela nas suas possessões.
[14] Cf. Leontina Ventura, D. Afonso III, Lisboa, Circulo de Leitores, 2006, pp.17 e 91.
[15] Cf. Paula Pinto Costa, ob.cit., p.85, nota 27. Ver Mapa 1 – Senhorios das Ordens Militares em Portugal após 1272, na página seguinte, para que se tenha a noção visual das áreas geográficas que se mantiveram na posse dos espatários após este conflito. situação.
[16] Cf. Idem, ibidem, p.85.
[17] Cf. Paula Pinto Costa, “As Adaptações das Ordens Militares aos Desafios da «Crise» Tardo-Medieval”, in Revista da Faculdade de Letras – HISTÓRIA, Porto, III Série, Vol. 5, 2004, p.146.
[18] Cf. Isabel Lago Barbosa, ob.cit., p.116.
[19] Cf. Fortunato de Almeida, ob.cit., p.151.
[20] Cf. Isabel Lago Barbosa, ob.cit., p.116.
[21] Cf. Fortunato de Almeida, ob.cit., p.153.
[22] Cf. Isabel Lago Barbosa, ob.cit., p.116.
[23] Cf. Idem, ibidem, p.116.
[24] Cf. Henrique Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal nos Séculos XII a XV, Tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1885, p.369.
[26] Cf. Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, Vol. II - Desde o Princípio do Reinado de D. Afonso IV até ao Fim do Reinado de D. João II (1325-1495), Nova Edição de Damião Peres, Lisboa-Porto, Livraria Civilização, 1969, p.149.
[27] Cf. Luís Adão da Fonseca, ob.cit., pp.346-347.
[28] Cf. Cristina Pimenta, “As Ordens de Avis e de Santiago na Baixa Idade Média: O Governo de D. Jorge”, Militarium Ordinum Analecta, Nº5, Direcção de Luís Adão da Fonseca, Porto, Fundação Engenheiro António de Almeida, 2001, p.36 e Humberto Baquero Moreno, ob.cit., p.68.
[29] CF. Bernardo Vasconcelos e Sousa, D. Afonso IV, Lisboa, Circulo de Leitores, 2005, p.170.
[30] Cf. Idem, ibidem, p.171.
[31] Cf. Idem, ibidem, p.194.
[32] Caso do Mestre de Santiago Fernando Afonso de Albuquerque e do seu papel no Tratado luso-inglês de Windsor (Paula Pinto Costa, “As Adaptações das Ordens Militares […], p.149).
[33] Cf. Paula Pinto Costa, “As Adaptações das Ordens Militares […], pp.147-148 e Cristina Pimenta, ob.cit., p.35. É relevante salientar que, no interregno de 1383-1385, a Ordem de Santiago apoiou o Mestre de Avis não só pela ascensão à coroa de um dos seus pares, mas também pela forte cumplicidade que esta entidade mantinha com a monarquia portuguesa, lutando para a manter separada da realeza castelhana (Paula Pinto Costa, “As Adaptações das Ordens Militares […], p.150).
[34] Cf. Luís Adão da Fonseca, ob.cit., p.336.
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