domingo, 13 de junho de 2010

Os Fins Justificam As Fraudes


Aos olhos de qualquer historiador o uso de um documento escrito para criar, ou reforçar, as bases de uma dada construção histórica, a partir da informação nele existente, requer a confirmação da sua validade histórica. A determinação da validade de um documento requer, para além da sua análise a nível interno, a sua contextualização no tempo e no espaço. Foram exactamente estes dois critérios aos quais se recorreu para a análise e comentário do excerto da Doação de Constantino.

A Doação de Constantino[1] é um documento de grande importância na Idade Média, pois o seu uso beneficiou o papado e os reis e imperadores que a ele se associaram. Tendo grande número de reis bárbaros se assumido como sucessores de Roma, a sua associação ao papado, através deste documento, reforçou o seu poder local[2] e o seu estatuto na cristandade, para a categoria de defensor da Igreja Romana[3].

A Doação é um documento falso[4], forjado no século VIII d.C.[5] pela a Cúria Pontifical Romana, para servir os seus interesses. A primeira menção que é feita ao dito documento ocorre no encontro de 754 d.C. entre o rei franco Pepino, o Breve, e o papa Estêvão II. Neste encontro o papa pede auxílio ao rei dos francos para a defesa de Roma da ameaça lombarda, auxílio esse dado na forma das negociações francas com Astolfo, rei dos lombardos, e do cerco a este em Pavia, em duas ocasiões diferentes. O apoio de Pepino ao papado resulta, não só da menção da doação, mas também, do reconhecimento deste do poder do monarca franco aquando da sua subida ao trono e da consagração do poder deste monarca e dos seus dois filhos pelo papa, durante o encontro já referido[6]. Depois deste conflito, com a vitória franca, Pepino recebe dos lombardos o exárcado de Ravena, entre outros territórios, indemnizações de guerra e tributos[7]. Doando várias terras ao papado, adquiridas aos lombardos, Pepino é a imagem do monarca carolíngio que defende os interesses políticos de Roma, como a sua sobrevivência política, sem a subordinação a qualquer poder temporal, e a expansão dos seus territórios na Península Itálica.
Apesar desta ligação entre Roma e o Francos ser fortalecida com a coroação de Carlos Magno como imperador no ano 800 d.C., a politica dos imperadores carolíngios nem sempre agradou ao papado, que tinham dedicado, em grande parte dos casos, mais tempo às suas conquistas fora da Península Itálica e à expulsão dos muçulmanos deste território do que à política expansionista de Roma.
Com o fim da ligação entre Roma e a dinastia carolíngia a coroa imperial não tenderá a ficar vaga por muito tempo.

Em termos de análise interna, a doação encontra-se dividida em dois momentos, a Confessio e a Donatio[8]. No primeiro dos quais explica-se como é que o imperador através do baptismo, feito pelo papa Silvestre, se curou da lepra. No segundo refere-se as várias doações que o imperador fez a Silvestre, e a todos os seus sucessores, como recompensa pela sua cura, como: a primazia sobre as quatro mais importantes cidades cristãs do oriente do Império (Alexandria, Antioquia, Jerusalém, Constantinopla) e sobre todas as igrejas do mundo[9], o reconhecimento como o mais importante representante da cristandade, a exclusividade no trato de assuntos relativos à fé, ao culto e a estabilidade cristã, o palácio de Latrão, a cidade de Roma, as províncias das regiões ocidentais, incluído Itália, e a coroa do imperador[10]. De todas as doações apenas o diadema, ou seja a coroa imperial, não foi usada, pois o papa não desejava sobrepô-la à sua tonsura, em vez disso passou a usar o phrigium, de cor branca, associada à ressurreição.
É necessário, antes que se progrida mais sobre a questão das doações, referir que o recurso à imagem do imperador Constantino (274-337 d.C.) para figurar neste documento segue a lógica do período em que foi escrita. Ao proclamar tolerância religiosa no império, através do Édito de Milão, ao criar legislação com base na consciência cristã e retirar legislação que a ela era contrária, ao decretar os domingos como feriados e ao construir em Roma, Belém, Jerusalém e Constantinopla basílicas, Constantino fica na história como o imperador romano defensor da cristandade[11]. Sendo assim, era logicamente possível que todas as doações que este, supostamente, faz no texto em questão fossem reais.

De todas as doações que o papa recebeu a mais relevante foi a coroa imperial, pois é o elemento que determina e identifica o imperador, e como este objecto é pertença do papa ele tem o poder de retirá-lo se quiser[12]. O que significa que o poder do imperador de Bizâncio mantinha-se por aceitação papal, alias a sua capital, Constantinopla, só era uma urbs regia porque o papa permitiu que a sua coroa fosse para essa cidade, além de que o império do Oriente só era romano porque a coroa do imperador vinha da cidade de Roma. Tudo isto demonstra como a Doação de Constantino tem um forte carga ideológica que combate Bizâncio, muito porque estes não se subjugavam ao bispo de Roma, com quem tinham conflitos de interesses[13].

Ainda quanto à análise interna há que referir que o documento justifica a transferência de capital administrativa romana para Constantinopla, por parte de Constantino, pelo facto de este não considerar ser apropriado que o imperador resida na mesma cidade em que se encontra o representante mais alto do cristianismo católico. E que a doação baseia-se num outro texto, a Legenda sancti Silvestri, que é uma versão romântica do baptismo de Constantino[14]. Base esta que permitiu a presença de pormenores de indumentária e de ideologia realistas no documento em análise.

Para concluir, é mais que obvio que durante um longo período de tempo a Doação de Constantino foi usada pelo papado como uma forma de reivindicar territórios que, supostamente, lhe pertenciam por direito. Além disso, a ideologia presente no documento pretende fazer inicialmente frente a Bizâncio, e mais tarde ao Ocidente, através da ideia chave da superioridade do poder espiritual sobre o temporal, da Igreja sobre os reis, que determina o dever do imperador como defensor de Roma, que recebe esse poder por favor divino e não como um direito, ou seja, o uso da coroa dependia da aprovação papal.


[1] Constitutum domni Constantini imperatoris no original latim.
[2] Neste período da história as boas relações com o representante da cristandade católica, o papa, conferiam estabilidade a estes reinos, muito devido à importância da religião nas sociedades e à ideia, sempre persistente, da associação do Império Romano à religião cristã.
[3] Cf. Walter Ullmann, The Growth of Papal Government in the Middle Ages. A Study in the Ideological Relation of Clerical to Lay Power, 2º Edição, Londres, Methuen & Co. Ltd London, 1962, pp.85-86.
[4] Apesar de falso, numa perspectiva estritamente histórica, por não ser comprovado por factos históricos, a sua validade em relações jurídicas é inegável, por ser emitido pelo mais importante órgão jurídico do seu tempo, e os seus efeitos na história do Ocidente incontornáveis.
A sua falsidade foi confirmada por Lorenzo Valla em 1440 no documento De falso creditada ed ementita Constantini donatione declamati.
[5] A data da criação da doação não é certa, sendo o período mais provável durante o pontificado de Paulo I (757-767). Sobre esta questão aconselha-se a leitura de Walter Ullmann, The Growth of Papal Government in the Middle Ages. A Study in the Ideological Relation of Clerical to Lay Power, 2º Edição Londres, Methuen & Co. Ltd London, 1962, p.76.
[6] Cf. Jan Dhondt, La Alta Edad Media, 3º Edição, Madrid, Siglo XXI de Espanã Editores, S.A, 1972, p.74.
[7] Cf. José Maria Lacarra, Historia de La Edad Media, 3º Edição, Tomo I, Barcelona, Montaner Y Simon, S.A, Editores, 1971, pp.318-319.
[8] Sendo que só a segunda é que está representada no excerto.
[9] Entenda-se, o mundo conhecido de então correspondia maioritariamente ao Império Romano.
[10] Apesar de não estar presente no excerto, doou também os símbolos, insígnias e indumentária imperiais.
[11] Não se sabe se praticou a religião cristã, sabe-se que foi baptizado às portas da morte. Pensa-se que a sua preocupação e protecção da religião cristã está relacionada com a tentativa de manter unido o Império Romano.
[12] O acto de retirar a coroa relaciona-se com a não satisfação das expectativas do papado, ou seja, pela não defesa dos seus interesses políticos e interferência em assuntos religiosos.
[13] Em áreas como assuntos de fé, doutrina e jurisdição sobre clérigos.
[14] Provavelmente feita no final do século V na Chancelaria Papal.

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