quinta-feira, 5 de julho de 2012

A Vida em Santiago do Cacém no século XVI



Após a conquista definitiva dos cristãos de Santiago do Cacém, e da sua consequente doação, em 1217 por D. Afonso II, à Ordem Militar de Santiago[1], esta povoação passou rapidamente de mera localidade do termo de Alcácer do Sal, uma das maiores o reino na Idade Média, para vila no ano de 1249[2]. Desde essa data até 1311, Santiago do Cacém foi uma comenda dos santiaguistas, passando por um curto período de controlo senhorial com Dona Vataça Lascaris, que terminou com a vida da princesa bizantina[3]. A partir de 1336 a vila regressou ao controlo da Ordem de Santiago e passou a pertencer à mesa mestral[4], situação que permaneceu até à extinção da referida Ordem.

A falta de fontes que tenham informações sobre o espaço e a população da vila de Santiago do Cacém em 1512, data de publicação do seu “foral novo”, levou-nos a recorrer a dados obtidos em datas apróximadas. Assim sabemos que na primeira metade do século XVI esta vila detinha um vasto termo[5], que incluía a “ribeira de millides[6], Ortiga, Peral, Benaiça e Rodrigo Añes[7], e que existem duas fontes coevas, o Numeramento de 1527-32 e o Cadastro da População do Reino, de 1537, ambas mandadas fazer por D. João III, que nos informam sobre o seu número de habitantes. A primeira refere a existência de duzentos e dezoito habitantes na vila[8] e de quinhentos e oitenta e cinco em todo o concelho[9], e a segunda de oitocentos e setenta e dois vizinhos do concelho[10]. Como se sabe a recolha deste números teve algumas falhas metodológicas e como tal é necessário ler estes dados como valores aproximados.

Passando para a estrutura administrativa do concelho, a leitura da carta de foral não nos fornece mais do que umas poucas alusões a funcionários municipais, mencionando-se apenas tabeliães, montarazes, rendeiros do gado[11], juízes, vintaneiros, quadrilheiros[12] e escrivães do concelho[13].
Como a organização concelhia devia ser semelhante à das outras localidades do senhorio da Ordem de Santiago decidimos por analogia a Alcácer do sal e Alhos Vedros nomear todos os cargos que deveriam existiriam neste concelho: alcaide-mor, almotacé, vereador, procurador, juízes (ordinários e de distintos foros), vintaneiro, escrivão, tabelião, porteiro, pregoeiro e quadrilheiro[14].

Os forais manuelinos eram diplomas muito estereotipados no seu conteúdo, apresentado uma estrutura quase formal, com disposições comuns a todos eles[16]. Mesmo perante este facto, se partimos do pressuposto que a lista de bens taxados e isentos da portagem é representativa da realidade económica da comunidade, não podemos, sem confrontar os dados do foral com outras fontes, determinar que bens eram ou não produzidos localmente. Este é o dilema em que nos encontramos, pois nenhumas Visitações da Ordem de Santiago nem outra espécie de documentos são conhecidos para serem usados como termo de comparação. Como tal optamos por analisar alguns aspectos mais óbvios que o foral nos dá a conhecer sobre a vida económica da vila.

O facto deste foral ser de portagem e, como tal, ser preenchido por uma longa lista de bens taxados e isentos, leva a querer que seria um centro urbano com uma intensa prática comercial, levada a cabo por mercadores profissionais que se deslocavam por todo o território nacional[17]. Esta hipótese é reforçada pela existência de uma via romana, que poderiam estar ainda em uso nos inícios da modernidade, em direcção ao reino do Algarve, que passava próximo de Santiago do Cacém.

Em todo o diploma encontramos as seguintes actividades a serem praticadas: o tabelionato; a criação de gado (bovino, asnal, caprino, ovino e suíno); produção de cereais, azeite, vinho, vinagre; caça; pesca de peixe e marisco; a extracção de lenha, de cera, de mel, de açúcar e de sal; cultivo de legumes e de frutas (favas, mostarda, lentilhas, alhos, cebolas, hortaliça, castanhas, nozes, ameixas, figos passados, uvas, amêndoas, pinhões, avelãs, bolotas, laranjas, cidras, peras, cerejas, uvas, figos, melões); e a produção semi-manufactureira (vestuário, calçado, curtição, moagem, utensílios domésticos, produtos de farmácia, tinturária e perfumes).
Desta longa lista apenas podemos afirmar com alguma segurança a existência de uma mão cheia destas práticas, sendo a primeira o tabelionado. Dela sabemos que a pensão dos tabeliães variava conforme a média de receitas que estes obtinham pelo seu labor. Com um termo muito maior que o de Arraiolos e Alhos Vedros, e uma população superior à desta última vila[18], Santiago do Cacém tinha quatro tabeliães que pagavam novecentos reais anuais ao rei, totalizando um total em conjunto de três mil e seiscentos reais, valor próximo dos três mil cento e vinte reais anuais de Alhos Vedros[19] e dos três mil oitocentos e setenta de Arraiolos[20]. Estes valores apenas servem para determinar que a actividade destes funcionários era tão intensa como a dos seus congéneres em duas localidades da província do Alentejo, não nos sendo apresentadas mais informações no foral sobre a sua actividade.

O pão e o vinho eram produtos alimentares básicos na alimentação das populações do início da Idade Moderna e como tal deviam ter uma presença garantida nos campos do termo de Santiago do Cacém. A sua isenção na portagem, para os vizinhos do concelho, confirma o seu estatuto de bens essenciais acessíveis à maioria, facilitado pelo poder central que não devia obtém deles grandes proveitos na sua tributação.
É óbvio que a transformação dos cereais e das uvas acarretava a existência de meios de produção próprios, como mós, moinhos, fornos e lagares, que, exceptuando o primeiro exemplo, não são mencionados no texto, tronando-se assim impossível determinar a sua importância global.

A pecuária era um dos sustentáculos da vida das vilas de média e pequena dimensão o período. Da criação de gado o homem obtinha força de tracção para trabalhar nos campos, meio de transporte para pessoas e bens e inúmeros produtos derivados, como a carne, o leite, o queijo, a manteiga, as peles e a lã, essenciais à sua alimentação.
Na portagem o gado bovino era o que mais pagava, um real por cabeça, sendo que os restantes animais pagavam dois ceitis. Dos alimentos provenientes destes animais só o leite não é colectado, o queijo, a manteiga, os coros e a lã são-no em transacções com elevadas quantidades, ligadas ao comércio. A livre circulação de animais nas pastagens da comarca, a isenção na compra de mantimentos pelos pastores para si e para o seu gado, e a prática de curtição de peles são elementos referidos no foral que parecem indicar a vulgaridade e abundância da pecuária na zona.

A pesca é um elemento forte neste concelho, já que grande parte do seu termo faz fronteira com o Oceano Atlântico, contendo ainda três lagoas, a de Melides, de Sancha e de Santo André. Acima dos dez quilos de peixe e de marisco, comprado ou vendido taxava-se de carga maior um real e meio, ficando-se apenas isento se o pescado do mar fosse inferior a dez quilos e o de água doce fosse abaixo dos cinco quilos, e neste último caso só com certos peixes, como as trutas, os bordalos e as bogas. O porquê desta excepção é um mistério pela falta de outras fontes, conjecturamos que talvez esta prática estivesse relacionada com os privilégios que a Ordem tinha sobre outras espécies, mais “apetecidas”. De qualquer modo, os valores taxados ao pescado e a importância desta prática na região para a subsistência da população, aparentam ser suficientes para confirmar a sua presença.


[1] Cf. Pe Miguel de Oliveira, História Eclesiástica de Portugal, 2ª Edição, Lisboa, Europa-America, 2001, p.110.
[2] Cf. Maria Teresa Lopes Pereira, Alcácer do Sal na Idade Média, 2º Edição, Lisboa, Edições Colibri, 2007, p.52.
[3] “Livro dos Copos - Vol. I”, in Militarium Ordinum Analecta, Nº 7, Coordenação Paula Pinto Costa, Porto, Fundação Engenheiro António de Almeida, 2006, doc.115, pp.232-233.
[4] O que correspondia à administração directa destes bens pelo mestre da Ordem.
[5] Igual ou superior ao de Évora, Beja e Alcácer do Sal no mesmo período. Vide Supra Mapa da Divisão Administrativa do Alentejo Segundo o Numeramento de 1517-32, p.23.
[6] Cf. Luiz Fernando de Carvalho Dias, ob.cit., p.43.
[7] Cf. Júlia Galego, A Comarca d'amtre Tejo e Odiana no numeramento de 1527-1532, Lisboa, Centro de Estudos Geográficos, 1982, entre as páginas 11 e 12.
[8] Cf. Teresa Ferreira Rodrigues, “As Estruturas Populacionais”, in História de Portugal, Direcção de José Mattoso, Coordenação de Volume Joaquim Romero Magalhães, Vol.III – No Alvorecer da Modernidade (1480-1620), [Lisboa], Circulo de Leitores, 1993, p.203.
[9] Cf. Júlia Galego, ob.cit., p.16, na vigésima quarta entrada da tabela.
[10] Cf. Maria Fernanda Alegria, “O Povoamento a Sul do Tejo nos Séculos XVI e XVII”, in Revista da Faculdade de Letras - GEOGRAFIA, I Série, Vol. I, Porto, 1986, p.202
[11] Cf. Luiz Fernando de Carvalho Dias, ob.cit., p.43.
[12] Cf. Idem, ibidem, pp.46-47.
[13] Cf. Idem, ibidem, p.47. Estes últimos escrivães são referentes aos outros concelhos.
[14] Cf. Idem, ibidem, p.25 e Cf. Maria Teresa Lopes Pereira, ob.cit., p.178. Para saber mais sobre estes cargos aconselhamos a leitura dos glossários do Foral de Vila Nova de Portimão: 1504, Actualização, Introdução, Notas e Glossário de Maria da Graça Maia Marques e Maria da Graça Mateus Ventura, Portimão, Câmara Municipal de Portimão, 1990, pp.83-96 e do Foral de Alhos Vedros, pp.91-94, disponível on-line em versão pdf em http://www.geocities.com/alhosved/, última revisão a 7/2008, ficheiro capturado a 5/06/08.
[15] Vide. Infra.p.6.
[16] Cf. Foral de Alhos Vedros , ob.cit., p.20
[17] Cf. Idem, ibidem, p.77.
[18] Cf. Teresa Ferreira Rodrigues, ob.cit., p.203.
[19] Dois tabeliães pagavam mil quinhentos e sessenta reais (Foral de Alhos Vedros, ob.cit. p.57).
[20] Dois tabeliães pagavam mil novecentos e trinta reais (O Foral de Arraiolos, ob.cit., p.51).

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