Com os Clérigos - Incluí relato sobre o Bispo de Silves com mais detalhe
No Terceiro Concílio de Latrão, realizado em
1179, foram apresentadas queixas pelos bispos sobre o desrespeito da sua
autoridade pelas Ordens do Templo e de São João do Hospital[1].
Este mal-estar no ceio dos prelados diocesanos da cristandade, causado pela liberdade
que as Ordens gozavam nas jurisdições destes, submetendo-se apenas ao poder
Papal[2],
não tardaria a contaminar o clero português na sua posição face à Ordem de
Santiago. Tal já é observável num documento papal da década de oitenta do
século XII, em que Lúcio III ordenava aos bispos da Península Ibérica que não
impedissem a concessão de ordens, nem o acesso aos óleos santos, para os
sacramentos, aos freires de Santiago, lembrando ainda que estes não podiam ser
excomungados pelos prelados[3].
Devido à necessidade de resolver estas tensões que teimavam em permanecer, o
mesmo papa, numa confirmação dos bens desta Ordem, aproveita para estatuir os
direitos episcopais exercidos sobre os espatários[4].
Apesar deste esforço do Santo Padre, a situação não se alterou, havendo
posteriormente mais apelos do papado ao entendimento entre os bispos e os
freires de Santiago[5].
Já numa fase mais avançado da presença da Ordem de Santiago em Portugal,
em que esta possuía um vasto e rico senhorio, gozando de numerosos privilégios,
ocorreram vários conflitos com bispos, causados na maioria dos casos pelas
tentativas da Ordem de se eximir da jurisdição episcopal e de obter a
diminuição do dízimo. Deste tipo de contendas seleccionamos apenas duas como
exemplo, ambas do século XIV, uma com o bispo de Silves e outra com o de Évora.
No ano de 1285 o bispo de Silves D. João Soares Alão,
procurando evitar conflitos com os santiaguistas, faz uma composição com esta
Ordem sobre as igrejas de Faro, de Tavira, de Cacela e de Castro Marim,
dividindo-se entre estes dois poderes as rendas e o direito à escolha dos
raçoeiros[6]. Esta composição foi em grande parte respeitada até ao falecimento
deste bispo e à sua substituição por D. João Eanes, que, pelo que é descrito em
vários diplomas, aparenta ter sido uma indivíduo muito temperamental, que não
teve problemas em desrespeitar os direitos e privilégios da Ordem, chegado
mesmo a humilhar os seus freires. Esta contenda com o novo bispo inicia-se em
1315, com um elevado número de queixas, apresentadas ao próprio D. João Eanes,
sobre as irregularidades no comprimento do convénio estabelecido sobre as
igrejas do Algarve, e sobre a má postura do bispo com a Ordem e os seus
membros, chegando-se a violar preceitos canónicos. Estes agravos estão presentes
num diploma de D. Lourenço Anes, Mestre da Ordem, datado desse mesmo ano,
perfazendo um total de dezassete queixas, que são aqui sumariamente
apresentadas[7]:
primeira, o bispo é acusado de cometer agravos às igrejas de São Clemente de
Loulé, de Santa Maria de Faro, de Santa Maria de Tavira, de Santa Maria de Cacela,
de Santa Maria de Castro Marim e de Santa Maria de Alcoutim, não cumprindo os
ditames da composição antes estabelecida, e recusando-se a pagar “aa outra parte quinhemtos marcos de prata”
estabelecidos como coima; segunda, os freires de Tavira, ao serviço do rei,
foram, “non seendo amoestado, nem
citados, nem ouvidos”, excomungados
pelo bispo, o que não era admissível já que estes eram de tal modo “privilligiados que nenhum arcebispo nem bispo
nom possam poer sentenças descomunhoens”; terceira, um mandado de
pronunciamento contra o mestre da Ordem foi entregue pelo bispo ao freire Pedro
Domingos, prior da igreja de Santa Maria de Tavira, que se ao recusar a faze-lo
acabou excomungado pelo prelado, sendo também por este mandado “deitar hum varaço aa garganta e que o
trouxesse a redor da igreja”; quarta, acusa-se o bispo de usar “muitas maas pallavrase muitos doestos e
fazendo nos (à Ordem) muitos
viltamentos em público e muitas ameeças”; quinta, acusa-se o bispo de
recolher dos padroeiros da Ordem entre trinta a trinta e três libras de
colheita, quando o que tinha sido definido encontrava-se no intervalo das dez a
doze libras; sexta, afirma-se que “os
raçoerios que vos (bispo) presentarom
os nossos freires prioles das dictas nossas igrejas (…) que as confirmedes e
non nas querendo confirmar por vos presentem pessooas booas e ydonias que
mereceem taaes benefícios”, lógica essa que não foi seguida no caso do
candidato Rui Martins, freire da Ordem, preterido por D. Francisco Pires,
sobrinho do bispo; sétima, afirma-se que o prelado de Silves recusou-se a pagar
aos priores das igrejas a metade das suas rações, acabando a Ordem por pagar a
sua metade acordada e o quarto que se encontrava em falta da diocese; oitava,
acusa-se o bispo de excomungar Afonso Eanes, freire da Ordem, não tendo este
chegado a ser “amoestado, nem citado, nem
ouvido”, e de o ameaçar várias vezes, furtando-lhe “huum cavalo em sellado e em frreado e hûa ascuas que valia todo cento e
cinquoenta livras”; nona, durante uma convocatória para a realização de um
sínodo da diocese, três freires de Santiago, Afonso Eanes, Pedro Domingues e
Ramiro Dias, priores de Loulé, Faro e Tavira respectivamente, envolveram-se
numa azeda troca de palavras com apoiantes do bispo, tendo Afonso Eanes sido
excomungado pelo bispo três vezes ao tentar aclamar ambas as partes, decidindo
depois apresentar queixa da situação a um tabelião, facto que provocou a ira de
D. João Eanes que decidiu excomungar os três piores santiaguistas; décima,
viola-se o direito e o costume do bispado de Silves e de “todollos outros bispados que os prioles cada huum em sa igreja ponham
thesoureiro e scripvam” que escolherem, pois o bispo “contra a vontade dos nosos freires priores” colocou os seus tesoureiros e escrivães que recebiam as “rendas
e dirreitos” da Ordem enviando-os para a diocese; décima primeira, o bispo
ordena que “nom sayam do bispado a nenhûa
parte que ajam d'adubar ou de aderençar algûas cousas necessárias em cas de
nosso senhor el Rey ou conosco sem nossa licença”, medida esta que é
descrita como “mal querença”,
pretendendo D. João Eanes obter assim dos freires doze soldos por licença; décima
segunda, o bispo castigou João Peres, um clérigo raçoeiro da igreja de Tavira,
devido a algo que este lhe tinha dito durante a confissão, mandando-o “trazer com huum baraço na garganta e
descalço dos pees per tres vezes andando arredor da igreja”; décima
terceira, perante o caso anterior Pedro Domingues, prior da igreja de Tavira,
contestou o acto e acabou excomungado pelo mesmo prelado, que mais tarde o
absolveu quando este aceitou se humilhar submetendo-se ao mesmo castigo
infligido a João Peres; décima quarta, D. Vasco Gonçalves, arcediago de Silves,
descrito como “muito boom homem de bom
logo e muy letrado”, aconselhava o bispo de Silves a não cometer actos como
os citados neste documento, acabou sendo humilhado publicamente e agredido por
este; décima quinta, Martim, escudeiro de Tavira, foi agravado pelo bispo,
sendo só absolvido por este após o pagamento da quantia de cem libras; décima
sexta, o bispo agarrou pelos cabelos de Francisco Peres, clérigo raçoeiro da
igreja de Faro, e deu-lhe “muitos couces
e muitas punhadas”, despindo-o e dando-lhe “tantos açoutes que por nove dias non se pode levantar”, sendo
depois ainda colocado numa cova; décima sétima, D. Martim Rodrigues, tesoureiro
de Silves, convidado a comer em Penina num banquete do bispo foi excomungado
sete vezes num espaço de uma hora por este, sem motivo aparente, violando-se
mais uma vez as “compossições que forom
feitas e mantheudas pollos bispos” antes deste, já que este membro da
Ordem, tal como outros antes, não foi “amoestado
e chamado e ouvido per cabidoo”.
Sobre o resultado deste diploma nas relações com o Bispo de
Silves nada se conseguiu apurar, podendo apenas se confirmar a existência de
pelo menos mais um bispo algarvio que teve más relações com os santiaguistas,
de seu nome D. Álvaro Pais (1333-1350), que hostilizou também o próprio clero
da diocese e o rei português. Facto este que acabou por definir o seu final de
vida, no ano de 1353, como refugiado em Sevilha[8].
[1] Cf. Henrique Gama Barros, ob.cit.,
p.376.
[2] Cf. Idem, ibidem, p.376.
[3] Cf. “Livro dos Copos - Vol. I”, ob.cit., doc.5, pp.76-77.
[4] Cf. Idem, ibidem, doc.46,
pp.132-133.
[5] Destas solicitações deixamos aqui dois curtos exemplos: o apelo
de Inocêncio IV ao Arcebispo de Braga, para que este não recusasse dar os
santos óleos aos santiaguistas, nem interrompesse a eucaristia aquando da sua
presença (“Livro dos Copos - Vol. I”, ob.cit., doc.9, p.78); e a bula de Alexandre IV que avisa os
bispos e arcebispos que não podiam imiscuir-se nos interesses da Ordem,
alegando a protecção dos direitos destes, pois caso o fizessem incorreriam na
pena de excomunhão (“Livro dos Copos - Vol. I”, ob.cit., doc.2, p.71).
[6] Cf. Idem, ibidem, ob.cit., doc.231, pp.402-403.
[7] Todas as citações e informações que se seguem provêm do documento 236,
páginas 410 a 415 do Livro dos Copos,
Vol. I.
[8] Vide. Bernardo Vasconcelos e Sousa, ob.cit., p.133.
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