domingo, 11 de julho de 2010

O Ciclo de Abraão (a Bíblia versus o Filme)


O filme em questão é de 1966, tem a duração de 174 minutos[1], e aborda os primeiros vinte e dois capítulos do livro do Génesis, retratando a criação do mundo, a expulsão do paraíso de Adão e Eva, a morte de Abel às mãos de Caim, a Arca de Noé, a Torre de Babel e a vida de Abraão, referindo-se momentos fundamentais como o estabelecimento da aliança com Deus, o teste à sua fé, através do sacrifício do seu filho Isaac, e, ainda, o papel de Lot e de Abraão na destruição de Sodoma[2]. Para retratar várias personagens dos mais importantes momentos do Génesis foram contratados actores conhecidos da época, como George C. Scott, Ava Gardner, Peter O’Toole, e outros que mais tarde chegaram ao estrelato, casos de Richard Harris e Michael Parks[3].

Descrevendo a acção do filme, que é igual à do livro do Génesis, observamos, na última história do filme, um Abrão já idoso que se separa do seu sobrinho Lot, filho de seu irmão Harran[4], de modo a evitar conflitos entre os pastores de ambos pela posse de terra. O primeiro destes dois assenta as suas tendas na terra de Canaã e o segundo nas planícies do Jordão, chegando às portas de Sodoma, apesar da advertência de Abrão[5]. O diálogo entre ambos é quase todo ele uma cópia do texto bíblico[6].

De seguida, ocorre uma acção nocturna retaliatória de Abrão e dos homens da sua casa sobre um grupo de soldados numerosos[7], que capturaram Lot e os seus companheiros[8].
É relevante mencionar que nesta cena de ataque, os hebreus são auxiliados por um artifício engenhoso que cria a ilusão de possuírem um elevado número de soldados. Tal é conseguido através da movimentação de bovinos nos montes circundantes ao acampamento com velas no seu dorso, deixando os soldados sitiados, de aparência robusta, meio desprevenidos para a sequência seguinte, a luta e a sua consequente derrota[9].

Em seguimento desta cena, Deus fala com o seu fiel seguidor, Abrão, e anuncia a futura aliança entre eles e a numerosa descendência deste, ocorrendo depois um sacrifício a Deus, no qual são usados uma ovelha, uma cabra, um carneiro, uma rola e um pombo[10], seguindo-se as indicações dadas pela entidade divina na disposição das carcaças dos animais e na sua escolha por idades[11].

Quando nos é apresentado Abrão neste filme, são também identificadas logo outras duas personagens fundamentais para o desenrolar da acção, a sua mulher, Sarai, e a sua escrava egípcia, Agar[12]. Sarai é estéril e, tal como no livro do Génesis, querendo dar descendência ao marido e não podendo por si, apela a que este o faça através da sua escrava[13]. O modo como a escrava despreza Sarai, por estar grávida do marido desta[14], é retratado no cinema de modo ao público criar antipatia perante Agar, não se reproduzindo no filme, com esse intento, partes do texto bíblico, como a resposta que Sarai dá ao tratamento da escrava[15], e a consequência deste tratamento, a fuga da serva[16].
Na sucessão destes acontecimentos, Deus promete um filho a Sara e Abraão[17] e o estabelecimento da futura aliança deste com Abraão e com os seus descendentes, simbolizada pela circuncisão[18].
A visita dos três anjos do Senhor[19], que anunciam o nascimento de um filho de Abraão com Sara[20] e a destruição de Sodoma e Gomorra[21], ocorre logo a seguir na história.
Nesta cena Abraão vai falando com Deus, através dos anjos, pedindo que não destrua a cidade de Sodoma se existirem pessoas justas nela[22].

Antes da destruição de Sodoma[23], ocorre a chegada de dois dos anjos do Senhor às portas da cidade, que encontram Lot e se deslocam com ele para a sua casa, dentro das muralhas da cidade[24]. O que se segue é uma reprodução fidedigna do texto bíblico[25], os homens de Sodoma vão à casa do sobrinho de Abraão exigindo ter acesso aos anjos para a prática das suas perversões[26], tal não ocorre pois o anjo fulmina-os com o seu olhar, cegando-os e permitindo a fuga de Lot e da sua família, da mulher e das suas duas filhas. Nesta cena, de confrontação no filme, Lot é avisado da destruição da cidade e de na sua fuga não poder olhar, em nenhum momento, para trás, para a cidade que deixou[27]. Este aviso é esquecido pela sua mulher que ao olhar para a cidade que deixou foi transformada em estátua de sal[28]. Com este descuido o espectador pode observar, à distância, a formação de algo que se assemelha a um cogumelo radioactivo sobre Sodoma, facto esse que é compreensível tendo em conta o filme ter sido produzido durante o auge da Guerra-fria, transparecendo assim para o cinema o medo de uma guerra nuclear.
É, também, interessante reflectir acerca do simbolismo das muralhas desta cidade, que separam esse espaço de devassidão de um espaço exterior, livre desses pecados. Este aspecto talvez esteja ligado à então recente criação do muro que dividiu Berlim ao meio, separando a Berlim da Alemanha Democrática, país do bloco comunista, da Berlim da Alemanha Federal, país do bloco ocidental.

Um ano após a passagem dos anjos pela tenda de Abraão, Sara teve um filho, Isaac, e com ele Deus continuaria a aliança que tinha feito com Abraão[29].
O filme explica a expulsão de Agar e Ismael apresentando um grande banquete aquando do desmame de Isaac, no qual é cometida uma afronta por ambos, ou seja, o riso e o arremesso de uma figura que representava Issac, que eventualmente se parte[30]. A cena seguinte ocorre no deserto no qual Agar e Ismael se encontram depois da expulsão, e é a reprodução do texto bíblico[31].

O momento final do filme consiste na representação do sacrifício de Isaac a Deus por parte de seu pai[32]. Deus fala com Abraão e diz-lhe que ele tem de sacrificar o seu filho. Com o coração pesado Abraão pega no seu filho, depois deste despedir-se de sua mãe, e ambos vão numa viagem de três dias para o local do sacrifício. Na viagem para este lugar, Abraão e Isaac passam por um cenário de destruição, de ruína da cidade de Sodoma. Esta representação da cidade talvez tenha como propósito demonstrar a devastação causada à mesma. Devastação essa que se enquadra dentro de uma esquema de imagens cravadas na mente do espectador que se assemelham às de Hiroshima e Nagasaki.
Aquando da aproximação do local de sacrifício, é nos dada a impressão de que Isaac sabe qual é o destino que o espera e que mesmo assim o aceita, ou seja, é fiel a seu pai. Monta-se o altar, Abraão põe Isaac na posição de sacrifício e Deus intervém afirmando que esta era uma prova à fidelidade de Abraão[33] e dá-lhes um carneiro para o holocausto.

Em suma, todo o filme segue de forma exemplar o primeiro livro do Antigo Testamento, sendo na maioria das vezes pura reprodução dos diálogos e acções deste, tendo obviamente uma marca contemporânea muito forte no modo como se conta estas histórias, como é o caso dos simbolismos de Sodoma[34].


[1] Cf. Hal Erickson, The Bible - In the Beginning - Plot Analysis, Disponível em http://www.allmovie.com
/cg/avg.dll?p=avg&sql=1:5318, [Ficheiro capturado a 18/4/07].
[2] Cf. John Nesbit, Huston's Epic Failure, Disponível em http://www.toxicuniverse.com/review.php?
rid=10005564, [Ficheiro capturado a 18/4/07].
[3] Cf. David Annandale, The Bible - The DVD Review, Disponível em http://www.upcomingdiscs.com/
dvd_review.phpload_this=bible&review_where=authors, [Ficheiro capturado a 18/4/07]. John Huston, o realizador deste filme, interpreta também uma personagem importante, Noé, e fá-lo de forma humorística.
[4] Cf. Génesis 11:27.28.
[5] Advertência apenas encontrada no filme.
[6] Refiro-me a Génesis 13:8.9.
[7] Que pertenciam a coligação dos reis das cidades de Elam, de Goim, de Sennaar e de Elasar, que lutavam contra outra coligação, a dos reis de Sodoma, de Gomorra, de Adma, de Ceboim e de Çoar (Génesis 14:8.9).
[8] Cf. Génesis 14:12. Mais uma vez, o filme reproduz o conteúdo dos versículos do primeiro livro da Bíblia.
[9] A Bíblia refere apenas que o ataque foi nocturno (Génesis 14:15.16), sendo assim a reprodução desta cena no filme gozou de maior liberdade por parte dos autores, que a tornaram assim mais apelativa para o espectador.
[10] Cf. Génesis 15:9.
[11] No filme recorre-se neste diálogo, entre o Senhor e o seu devoto seguidor, às palavras exactas da Bíblia, presentes em Génesis 15:1-10.
[12] Esta última para ser identificada como egípcia pelo público é representada com pinturas faciais que imediatamente são associadas ao Antigo Egipto.
[13] Vide. Genésis 16:2. Este acto é legal segundo a lei mesopotâmica do período (a lei do país de origem de Abrão), sendo já mencionada no Código de Hammurabi.
[14] Cf. Génesis 16:5.
[15] “Então, Sarai tratou-a mal e humilhou-a (…)” (Génesis 16:6).
[16] Cf. Génesis 16:6-12.
[17] Cf. Génesis 17:16. A partir deste momento Sarai passa a chamar-se Sara, que significa “princesa”, isto por ser mãe da grande descendência de Abraão, e Abrão é agora chamado de Abraão, ou seja, “pai da multidão”, pois dele viram inúmeros povos (Génesis 17:5).
[18] Cf. Génesis 17:9-14. Este diálogo do Génesis é totalmente reproduzido no filme.
[19] Cf. Génesis 18:2.3.
[20] Cf. Génesis 18:9. Esta notícia é recebida, tal como em Génesis 18:12-14, por Sara com riso, demonstrando-se incrédula.
[21] Em Génesis 18:21.22, tal como no filme, não nos é dito directamente que Deus vai destruir esta ímpia cidade, só com Abraão, no filme e em Génesis 18:23, é que é referido exactamente o castigo aplicado a Sodoma, a sua destruição.
[22] A negociação cuidada de Abraão com Deus consiste numa progressiva redução do número de pessoas justas que devem de existir na cidade para a salvar da destruição. Esta negociação é orientada por Génesis 18:23-32.
[23] Que ocorre, tal como a Gomorra, pelos seus pecados, pela devassidão praticada dentro de suas muralhas, ou seja, pela prática de actos sexuais considerados bizarros. Em Ezequiel 16:49 afirma-se: "Eis em que consistiu o crime de Sodoma [...]: orgulho, abundância de alimentos e insolências; estas foram as faltas que cometeu [...]: não socorreram o pobre e o indigente". Também digno de salientar é a reprodução das práticas sexuais ser apresentado no filme, aquando da deslocação de Lot e os seus convidados pela cidade, nas sombras das casas, recorrendo a jogos de luz que ocultam uma representação mais audaz.
[24] Vide. Génesis 19:3.
[25] Cf. Génesis 19:4-10. Exceptuando o facto da porta da casa de Lot no filme ser derrubada e na Bíblia em Génesis 19:10.11, não e na acção dos anjos que ao protegerem Lot fecharem a porta aos Sodomitas e ambos os cegarem. Isto devido à necessidade das personagens ao dialogarem, no grande ecrã, terem de se encontrarem frente a frente para que haja maior impacto dramático e para que possamos observar como o anjo cega todos que ameaçavam a vida da família de Lot.
[26] Cf. Génesis 19:5.
[27] Cf. Génesis 19:17
[28] Vide. Génesis 19:26.
[29] Cf. Géneis 17:19.
[30] A Bíblia só nos diz que Ismael se riu e que Sara exigiu a sua expulsão, tendo Deus apoiado este pedido (Génesis 21:10.11).
[31] Cf. Génesis 21:14-19.
[32] Todo este passo filmico é a reprodução integral do capítulo 22 do Génesis, excepto a passagem pelos destroços de Sodoma e o facto de na Bíblia Abraão levar nessa viagem servos.
[33] Pois este obedeceu à ordem divina apesar desta ir destruir o seu filho (Génesis 22:12).
[34] Vide. Infra p.4,5 a referência às muralhas e à destruição da cidade.

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