domingo, 11 de julho de 2010

Medeia de Pasolini Parte I


O cinema revitalizou o gosto das massas por temas da história do período clássico e tornou-os mais acessíveis, através de algumas adaptações, que por vezes adulteraram muito do conceito original.
No caso do ciclo mitológico de Medeia foram feitos alguns filmes, sendo que centrados na sua figura, e albergando como nome Medeia, contam-se pelo menos três, o de José Quintero, de 1959, o de Pier Paolo Pasolini, de 1969, e o telefilme de Lars von Trier, do ano de 1987.

No caso do trabalho de Pasolini temos em mãos um brilhante exemplar do cinema de boa qualidade, uma bem ajustada adaptação da tragédia de Eurípides que possui características próprias muito interessantes.
Antes de se passar à descrição do filme em si, e das suas características, apresenta-se uma breve biografia de Pasolini.

Pier Paolo Pasolini (1922-1975) foi um italiano que desempenhou profissões tão variadas como realizador, pintor, argumentista, novelista, poeta, ensaísta, teórico e critico de cinema.[1] Estudou na Universidade de Bolonha, entrando no mundo do cinema em 1954, primeiro como argumentista em La Dona del Fiume, de Mario Soldati, colaborando ainda nessa década em argumentos de filmes de Fellini e Bolognini. Em 1961 estreia-se como realizador, em Accattonel, baseado em uma das suas novelas.[2]
Os seus filmes causaram grande polémica em Itália, levando à crítica do estado italiano e da igreja católica, devido ao papel proeminente dado ao sexo, à violência e as suas posições pouco ortodoxas sobre a religião.[3]


Pasolini no seu filme Medea decidiu apresentar a história desta personagem de modo a que se pudesse tornar mais compreensível aos olhos do espectador as causas do infanticídio de Medeia.
A história do filme inicia-se com uma sucessão de momentos chave da vida do jovem Jasão, primeiro com o centauro Quíron[4] a revelar a este, de apenas cinco anos, que não era o seu pai e iniciando uma longa narração sobre o Velo de Ouro[5]. Na cena seguinte Jasão é um pouco mais velho e encontra-se sentado no dorso do Centauro, que lhe conta sobre o seu vínculo à cidade de Iolco e de como o seu pai tinha sido destronado pelo seu tio. Aos treze anos Jasão é nos mostrado a pescar com Quíron, que reflecte acerca do carácter sagrado de todos os fenómenos naturais.[6] Atingindo a idade adulta de Jasão, Quíron é apresentado ao espectador como uma personagem com características físicas exclusivamente humanas, o que corresponde à passagem do protagonismo da vertente religioso na vida de Jasão para uma outro nível, um estádio superior, de racionalidade.[7]Com esta nova forma Quíron relembra a Jasão do seu dever de reclamar os seus direitos à coroa de Pélias.

A sequência seguinte de acontecimentos está ligada a um outro mundo, o mundo bárbaro de Medeia. A acção na Cólquida inicia-se com uma procissão, na qual a sacerdotisa Medeia preside ao ritual de sacrifício humano em honra do deus da vegetação. Um indivíduo escolhido para o rito sacrificial é estrangulado, decapitado e despedaçado, sendo isto precedido de aspectos ritualistas vários, que abrangem desde as pinturas corporais até o vestuário que é por ele usado. O sangue e pedaços do corpo do sacrifício são distribuídos pelas pessoas para que estas as possam espalhar pelos campos, completando-se assim o ritual.[8] Segue-se ao rito uma festa com canto e dança.[9]
Na cena subsequente é nos apresentado Jasão, adulto que seguido pelos seus companheiros Argonautas, vai ao encontro ao rei Pélias, reclamando o seu direito ao trono. Pélias cede perante Jasão, mas exige-lhe em troca o retorno do Velo de Ouro[10] à cidade de Iolco. Navegando em busca do Velo, numa simples jangada, que não tem nada de formidável como a nau Argo, os argonautas chegam à Colquida, e usando os cavalos selvagens que capturaram dedicam-se à pilhagem.[11]

O primeiro encontro de Medeia com Jasão dá-se no templo onde estava depositado o Velo de Ouro, resultando dai o desmaio da princesa e a sua tentativa frustrada em retirar o Velo sozinha. Com o apoio do seu irmão Apsirto consegue-se extrair o Velo e leva-lo aos Argonautas. A actuação de Medeia neste momento do filme faz-nos crer que ao ver Jasão pela primeira vez a princesa ficou apaixonada, como que se fosse atingida por uma seta de Eros, ajudando Jasão no seu objectivo.
Depois de se juntarem aos Argonautas, Medeia e o seu irmão dirigem os estrangeiros pela áspera e inóspita Colquita[12] fugindo das forças de seu pai, que os perseguem após o conhecimento da ausência do Velo sagrado. Para atrasar os perseguidores Medeia mata Apsirto e esquarteja o seu corpo, distribuindo-o os pedaços pelo caminho de fuga, obrigando assim a paragens para reconstituir um corpo para o funeral. As cenas da recolha de partes do corpo e do regresso à capital do rei com os restos mortais são exemplificativos do impacto da traição e da dor causada por Medeia ao seu povo.[13]
Seguidamente à fuga do território da Cólquida, aparece-nos uma Medeia desorientada e receosa na jangada que observa com grande distanciamento os seus companheiros de viagem.[14] Após a chegada a terra firme começa-se a montar um campo, o que causa o desespero na protagonista da história, pois esta é incapaz de compreender como é que alguém pode fazer qualquer tipo de construção sem primeiro se fazer um centro sagrado.[15] Os Argonautas face a esta reacção não se deixam afligir, montam campo, bebem, comem, riem e divertem-se, deixando Medeia a caminhar pela terra árida a pedir a intervenção dos elementos sagrados da natureza para a ajudarem.
Após findar a sua refeição Jasão vai à procura da protagonista, encontrando-a sozinha e inquieta, leva-a pela mão para uma das tendas, onde praticam o acto sexual.[16]
Este momento de união dos corpos serve para Medeia como a substituição da sua religiosidade perdida, estabelecendo-se uma nova relação sagrada com a realidade.[17]

No retorno a Iolco, Jasão entrega o Velo de Ouro ao rei Pélias, que se recusa a entregar o reino ao sobrinho. Nesta mesma cidade, acerta altura, ocorre a mudança de vestes de Medeia. Esta, através das Pelíades que a despedem e vestem, deixa de usar a sua veste de sacerdotisa e passa a usar um vestuário local[18], grego, facto este que é representativo da sua integração nas terras civilizadas da Grécia.

A acção passa depois para Corinto, que é apresentada como uma cidade cercada por muralhas e posicionada no topo de um elevado monte. Dentro deste espaço Quíron aparece a Jasão, em duas formas distintas, a de centauro e a de homem. Ambos tem um propósito simbólico no filme. A primeira forma representa a sacralização de Quíron, ligada à juventude de Jasão, a segunda liga-se a um imagem desprovida de qualquer dimensão religiosa, da idade adulta. É através deste encontro com Quíron que Jasão fica a saber da desorientação religiosa vivida por sua mulher.[19]
Logo a seguir, visualizamos a casa de Medeia, localizada fora das muralhas, e a deslocação desta personagem à cidade onde, através da observação dos jovens numa dança ritual de despedida dos homens solteiros, fica a saber do casamento de seu marido com a princesa Glauce.[20] Medeia regressa a casa devastada, chorando num quarto sozinha. Neste espaço tem uma visão da sua terra natal, e fala com o sol, o seu avô, o deus Hélio.[21] Este momento simboliza o reatar da sua ligação com esta divindade, que lhe dá as forças necessárias para preparar a vingança sobre Jasão, que a abandonou.
Na cena que se segue Medeia tem uma visão dos acontecimentos do futuro. Nela Jasão chega à sua casa, estabelecendo-se uma bom ambiente entre ambos, sendo que, de seguida, Jasão e os seus filhos entregam a prenda, de Medeia, à noiva. Após isto, ocorre a morte desta e de seu pai pelo fogo dos venenos contidos no vestido entregue.


Voltando à realidade no filme, Medeia recebe a visita de Creonte, que receando pela vida de sua filha face à possível ameaça da infeliz feiticeira Medeia, lhe exige a saída da cidade com os seus filhos. Com o término do diálogo estabelece-se que Medeia tem até o dia seguinte para sair da cidade.[22]

Seguidamente a este confronto, Jasão vai ter com Medeia, a pedido desta, ocorrendo a última relação sexual entre ambos. Este acto terá ocorrido como uma forma de facilitar a manipulação de Jasão, não o levando a desconfiar das intenções de Medeia na entrega das prendas envenenadas para a noiva.
As prendas são depois entregues pelos filhos de Medeia, causando a morte da princesa e do rei, não queimados como na visão anterior, mas por suicido que resulta do salto do alto das muralhas para a sua parte exterior.[23]
Os momentos de vida finais das crianças são vividos num cenário caseiro íntimo no qual Medeia é apresentada como uma mãe carinhosa, que lhes dá banho e canta canções de embalar. Esta representação final de Medeia deverá conferir um lado mais humano à personagem.[24]
Para executar o infanticídio Medeia vai buscar coragem à lua, com a qual restabelece relações durante a noite.[25] De manhã as crianças encontram-se mortas, provavelmente envenenadas, e a protagonista pega fogo à casa.

[1] Cf. Fransisco Salvador Ventura, “La Medea de Pasolini (1969), Una Estética Contracultural de lo Mítico”, in Medeas : versiones de un mito desde Grecia hasta hoy, Vol. II, edicão de Aurora López e Andrés Pociña, Granada, Universidad de Granada, 2002, p.1024.
[2] Cf. Ephraim Katz, “Pasolini, Pier Paolo”, in The Macmillan International Film Encyclopedia, London, Herpercollibs Publishers, 1998, p.1068. 
[3] Foi considerado por muitos no período como um marxista de extrema-esquerda.
[4] Que na mitologia criou Jasão e lhe ensinou a ciência da medicina.
[5] Cf. Pier Paolo Pasolini, Medea, Roma, Films Number One/ Janus Films/ Planfilm/ San Marco Finanziera, 1969, min.2-3.
[6] Cf. Fransisco Salvador Ventura, ob. cit., p.1012.
[7] Cf. Idem, ibidem, p.1012.
[8] Cf. Pier Paolo Pasolini, ob. cit., min.11-21.
[9] Cf. Idem, ibidem, min.21-23.
[10] Este objecto simboliza a continuidade do poder e da ordem, como é referido pelo Jasão no filme, no minuto 55.
[11] Cf. Idem, ibidem, min.24-26.
[12] Cf. Fransisco Salvador Ventura, ob.cit., p.1013.
[13] Cf. Pier Paolo Pasolini, ob. cit., min.42-46.
[14] Cf. Idem, ibidem, min.47-48
[15] Cf. Fransisco Salvador Ventura, ob.cit., p.1014.
[16] Cf. Pier Paolo Pasolini, ob. cit., min.51-52.
[17] Cf. Fransisco Salvador Ventura, ob.cit., p.1014.
[18] Cf. Pier Paolo Pasolini, ob. cit., min. 55-56.
[19] Cf. Fransisco Salvador Ventura, ob.cit., p.1015.
[20] Cf. Pier Paolo Pasolini, ob. cit., min. 64-65.
[21] Cf. Idem, ibidem, min.68. Neste diálogo com o seu avô e na visão que tem do futuro Medeia aparece-nos vestida com uma roupa igual a que tinha usado na Cólquida. Este facto revela-se como simbolizando o regresso às origens, ao mundo do sagrado, primitivo do qual veio.
[22] Cf. Idem, ibidem, min.82-85.
[23] Cf. Idem, ibidem, min.94-96.
[24] Depois de “rehumanizada” Medeia, o assassínio dos seus filhos é visto como um consequência da cultura de onde ela é originária.
[25] Cf. Idem, ibidem, min.116.

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