À semelhança de grande número dos mitos do mundo grego o mito de Medeia não tem uma versão canónica a ser difundida, pelo menos até à tragédia de Eurípides, Medeia, no século V a.C., que quase assume esse papel 1.
Chegaram até a actualidade vários contributos de autores clássicos sobre o mito de Medeia, nos quais existem sempre informações concordantes, como a herança genealógica divina da protagonista, a sua origem geográfica, e a sua participação nas aventuras de Jasão e dos seus companheiros, os Argonautas.
As referidas variações do mito são resultado da passagem a escrito das tradições orais que variavam conforme o período histórico e o seu local de origem. Além do mais, a extensão do ciclo mitológico de Medeia faz com que ela apareça em vários mitos de outras personagens importantes do mundo grego, casos de Jasão, Héracles, Teseu e Dioniso 2, ocupando uma posição central no seu mito e no de Jasão.
Depois desta breve introdução à questão do mito apresenta-se de seguida uma breve descrição do mito de Medeia, que se restringe aos aspectos mais relatados do mito.
Medeia era filha do rei Estes, da Cólquida, e de Oceânide Idia, neta de Hélio, deus Sol, e sobrinha da feiticeira Circe 3. Por vezes a deusa Hécate 4é nos apresentada como sua mãe, e Circe como sua irmã, factos esses que justificam a imagem de feitiçaria que possui nos mitos dos quais faz parte 5.
O seu papel na obtenção do Velo de Ouro para Jasão foi fundamental 6. Este objecto era requerido por Pélias, rei de Iolco, a Jasão, seu sobrinho, como condição necessária para este pudesse ser rei 7.
É com este acordo em mente que Jasão e os Argonautas 8 realizam a viagem à Cólquida em busca do Velo 9.
Superando várias dificuldades durante a viagem, na nau Argo, Jasão alcança o seu destino e pede ao rei Estes o Velo de Ouro, sendo-lhe exigido em troca um desafio para comprovar a sua coragem. O desafio era avassalador, consistindo em arar um campo com touros que cuspiam fogo, semeando dentes de um dragão 10, e lutando com o exército que saia dos dentes semeados. Com a prova superada, o rei local recusa ceder a posse do Velo a um estrangeiro, o que dá motivo a que Medeia 11 faça mais uma intervenção, ajudando o herói, através dos seus encantamentos, a ultrapassar o enorme Dragão que protegia o Velo 12.
A partir deste momento os Argonautas, conjuntamente com Medeia, põem-se em fuga com o Velo de Ouro, tendo a princesa feiticeira evitado com que o grupo fosse apanhado por seu pai, e as suas forças, que os perseguia através do assassínio do seu irmão, Apsirto, e do despedaçamento e dispersão dos bocados do cadáver ao longo do caminho de fuga. Esta acção resulta do conhecimento de que o seu pai iria parar para recolher os restos mortais do filho, de modo a poder realizar um funeral adequado 13.
Posteriormente, Jasão e Medeia voltam para Iolco e são confrontados com a recusa de Pélias de entregar o poder ao seu sobrinho, o que explica a nova intervenção de Medeia no assassínio deste rei pelas suas filhas 14. As Pelíades, filhas do rei Pélias, foram convencidas por Medeia de que poderiam rejuvenescer o seu pai, e seguindo as suas indicações cortaram-no aos bocados e depositaram-no num caldeirão, sem que o feitiço se realiza-se. 15 Como consequência deste acto Medeia e Jasão refugiam-se em Corinto, estando casados e tendo filhos.
Após alguns anos juntos em Corinto, Jasão abandona Medeia para se casar com a jovem princesa Glauce, filho do rei local, Creonte. Com perecimento dos filhos do casal, Medeia muda-se para Atenas, onde se casa com Egeu, fundador mítico desta cidade, atentando, anos mais tarde, contra a vida de Teseu 16.
Existe, curiosamente, uma tradição na qual Medeia não morreria, sendo levada para os campos Elísios, onde teria uma relação com Aquiles, à semelhança dos casos de Ifigénia, Helena e de Políxena 17.
Em vários momentos do mito de Medeia existem nos relatos pequenas diferenças ou nuances, sendo relevante salientar duas, para que se possa melhor entender a bagagem de conhecimentos do público das tragédias de Eurípides e do próprio autor.
Entre estas várias nuances contam-se o número de filhos do casal, que varia bastante conforme as fontes, podendo ser de catorze filhos, sete meninas e sete meninos, ou segundo a concepção de Pausanias 18 um filho, Medeio ou Medos, e uma filha, Eriópes. Também de salientar é o contributo informativo de Diodoro, que indica três filhos, Téssalo, Alcímenes e Tisandro, uma tradição que apresenta a existência de dois filhos masculinos 19, chamados Feres e Mérmero 20, e, por fim, Hesíodo, que refere apenas Medeio 21.
O outro aspecto de relevo nas nuances do mito é as várias histórias sobre a morte dos filhos de Medeia, que nos apresentam diferentes culpados. Exemplos disto são o caso de Pausânias, que atribui as responsabilidades a Medeia, que logo após dar à luz levaria o recém-nascido para o templo de Hera, para que esta pudesse torná-los imortais, acabando inadvertidamente por os matar 22. Outra contribuição é a de Parmeniscus, que culpa os habitantes de Corinto da morte das catorze crianças no templo de Hera Akraia, afirmando que estes depois acusaram a mãe do crime. Creophylos apresenta as responsabilidades da morte das crianças também nas mãos dos coríntios, mas como acto resultante do assassínio, com venenos, do rei Creonte por Medeia 23.
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1 Com isto refiro-me à importância que a obra tem no tratamento do mito e da sua influência nas posteriores expressões artísticas sobre o mesmo.
2 Cf. Emma Griffiths, Medea¸ London/ New York, Routlege, 2006, p.6.
3 Cf. Pierre Grimal, “Medeia”, in Dicionário da Mitologia Grega e Romana, 4º Edição, Lisboa, Difel, 2004, pp.292-294.
4 Deusa ligada ao mundo das sombras, à magia e aos feitiços. É a ela que se atribui a criação da feitiçaria.
5 Cf. “Medeia”, in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. XVI, Lisboa/ Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia, [s.d.], p.673.
6 Ela usa os seus feitiços, as suas artimanhas para o ajudar, porque está apaixonada por Jasão. Esta paixão era resultado da intervenção de Afrodite, que simpatizando com este herói decide ajudá-lo dando-lhe acesso a Medeia e a sua magia.
7 Ocupando assim a posição que teria sido sua inicialmente se o seu tio não tivesse usurpado a coroa ao pai de Jasão.
8 Que seriam mais ou menos cinquenta, entre os quais estariam Castor, Pólux, Orfeu, Héracles, Hilas e Peleu.
9 Cf. “The Play in Mythic Context: Medea´s and Jason´s Earlier Adventures”, in Readings on Medea. editon by Don Nardo, San Diego, Greenhaven Press, 2001, pp.25-26.
10 Cf. Robert Graves, The Greek Myths, Vol. II, London, The Folio Society, 1996, p.345.
11 Medeia tinha intervido anteriormente na prova imposta a Jasão, dando-lhe um unguento para o proteger do fogo dos touros.
12 Cf. Idem, ibidem, p.544.
13 Cf. Maria-José Ragué Arias, “La Interminable Muerte de Los Hijos de Medea”, in Medeas : versiones de un mito desde Grecia hasta hoy, Vol.I, edicão de Aurora López e Andrés Pociña, Granada, Universidad de Granada, 2002, p.63.
14 Sobre este episódio Eurípides escreveu uma tragédia chamada As Pelíades, a qual não chegou até nós.
15 A capacidade de rejuvenescimento de Medeia foi usada em Éson, pai do seu marido, e na demonstração feita às Pelíades num carneiro velho que após ser despedaçado reemergiu novo e inteiro do seu caldeirão.
16 Cf. Robert Graves, ob. cit., p.560.
17 Cf. Idem, ibidem, p.561.
18 Cf. Emma Griffiths, ob. cit., p.10.
19 A tragédia de Eurípides Medeia usa dois filhos, dos quais não se sabem os nomes.
20 Cf. Pierre Grimal, ob. cit., p.293.
21 Cf. Donald J. Mastronarde, “Euripedes’ Medea and the Medea-Myth”, in Medea, Euripides, edited by Donald J. Mastronarde, Cambridge, Cambridge University Press, 2002, p.49.
22 Cf. Idem, ibidem, p52.
23 Cf. Idem, ibidem, p.51.
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