O filme de Pasolini não segue a Medeia de Eurípides de forma única e exclusiva, pelo contrário, a acção inicia-se bem antes do período de tempo tratado pela tragédia, com um jovem Jasão e uma Medeia ainda a viver num mundo bárbaro. Como tal, a regra da tragédia de que toda a acção tem de decorrer num só dia não é no filme aplicada, já que se representa um período muito amplo de anos. Nesta visão lata temporal são apenas referidos acontecimentos específicos para que se entenda melhor os acontecimentos ocorridos em Corinto. No filme, do total de cento e dezoito minutos, dedica-se apenas, cerca de, quarenta minutos do fim aos acontecimentos decorridos em Corinto, ou seja, ao espaço tratado na tragédia.
Uma parte substancial do texto trágico de Eurípides foi usado nos diálogos mais importantes entre as personagens[26]. Mas Pasolini na sua abordagem de Medeia teve que fazer algumas alterações aos textos[27], às personagens e às situações que o poeta grego usou devido ao encadeamento da acção escolhido pelo realizador. Um dos mais visíveis exemplos da adaptação que se faz da peça grega é a ausência do rei Egeu, que talvez fosse inútil no desenvolvimento da acção do filme, já que Medeia não pretende escapar após a morte dos seus filhos.
Um outro elemento novo no filme de Pasolini foi o último acto sexual entre o casal Jasão e Medeia.[28]
No filme estão presentes personagens que foram retiradas da tragédia, casos da Ama, o Coro e, aparentemente, o Pedagogo. A Ama assume um papel praticamente igual ao da tragédia, demonstrando uma forte ligação a Medeia, visível nas funções que ocupa na casa, no acompanhamento da sua senhora e indo chamar outras personagens à presença dela. Importante momentos da sua participação são a demonstração de preocupação pela sua patroa, quando apela a que não vá a Corinto, pois já devia saber do novo casamento de Jasão, e quando se opõem aos plano de vingança de Medeia, sendo a única das servas a tomar esta posição.
O Coro, elemento fundamental da tragédia grega aparece-nos também no filme, mas sob várias formas. A primeira das quais toma a forma das camponesas da Cólquida, que trabalhando na terra, nos teares e servindo à mesa dos seus senhores, cantam enunciado no futuro a chegada de estrangeiros que causaram grande mal ao reino.[29] A segunda forma toma forma representada nas criadas da casa de Medeia, a quem ela comunica os seus planos de vingança.[30] As criadas dão o seu apoio a sua senhora, sendo que a réplica dos movimentos repetitivos de Medeia, andando de frente para trás e vice-versa numa parte da casa, apelado aos deuses, pode disso ser exemplo.[31]
O Pedagogo aparenta ser uma personagem adolescente que passa o tempo todo com as crianças, sem ter uma única fala no filme, ou seja, não assume um papel tão relevante como na tragédia
Em termos de personagens criadas face ao drama euripidiano conta-se apenas Quiríon, concebido com grande liberdade artística, que representa a metáfora visível e viva da dualidade do mundo sagrado e profano.[32]
O filme, alias, apresenta uma concepção dual de mundos em oposição. Medeia é a representante do mundo primitivo, ligada ao passado, ao sagrado, em que os rituais e a ligação aos deuses são fundamentais, enquanto que Jasão representa o presente, um mundo laico, uma realidade, a civilização actual. Na infância de Jasão, como já foi referido, também este viveu ligado aos aspectos sagrados.[33]
Passando a análise para outros aspectos simbólicos do filme, temos vários de grande relevo. Primeiro, os restos mortais de Apsirto espalhados pela Cólquida, que marcam o fim do espaço sagrado, segundo a morte de Glauce, que ao realizar-se num espaço intermédio, entre a muralha da cidade e a casa de Medeia, faz com que o seu corpo tenha a função de separar as duas esferas. É curioso constatar que a casa de Medeia encontra-se num plano inferior ao resto da cidade de Corinto, pois Medeia, ao contrário da cidade, que representa o mundo superior e laico, está numa posição inferior, num outro mundo, desprezado pela cultura superior.[34]
Em terceiro e último lugar, no fim do filme o fogo que destrói a habitação serve de barreira entre Jasão e os corpos dos seus filhos. Esta barreira final é a demonstração da falta de comunicação adequando entre os dois mundos, sagrado e profano.
Ainda sobre a concepção dual é relevante afirmar que a passagem de Medeia ao mundo laico é expresso no filme com o começo do uso das roupas de um mundo dessacralizado.[35]A laicização também é sentida na cena em que é entregue ao rei Pélias o Velo de Ouro, sendo que com a sua recusa no comprimento da sua promessa este objecto sagrado é nos revelado que fora da Cólquita perde o seu significado original.[36]
A omnipresença da duplicidade dos mundos apresenta-se no filme até na cena da morte da princesa Galuce, na diferença da causa de morte na visão de Medeia, por fogo, e na realidade, por suicídio. No primeiro caso são os poderes da sacerdotisa da Cólquida, neta de Hélios, que justificam o fogo, no segundo quer-se apresentar uma visão mais realista, sem intervenção de divindades ou de feiticeiras, logo a escolha incidiu no suicídio, resultante do desespero de Glauce causado pelos grandes remorsos em aceitar as prendas de uma mulher traída pelo seu futuro marido.
As divindades são algumas vezes mencionadas na obra de Pasolini, tal como a tragédia, sendo que a sua presença é reduzida e restrita a apenas duas divindades, Hélio e Selena. O deus Hélio, deus sol, é visível no contacto estabelecido com a sua neta através da janela para o mar, dando a esta os instrumentos para levar a cabo a sua vingança, relembrando-a de quem ela é. A deusa Selene, que é a personificação da lua, aparece fugazmente[37], dando o que aparenta ser o último apoio necessário para a execução da morte das crianças.
Os locais de filmagem do filme foram seleccionados pelo realizador de modo a se conseguir transmitir na representação do espaço a dualidade dos mundos em conflito.
A Cólquida é aqui representada como uma terra em que paisagem é extremamente montanhosa e cavernosa, dominando uma aparência selvagem e primitiva[38], o que contrasta com os indicadores visuais urbanos, de civilidade, do resto do filme.[39]
A acrescentar ao carácter primitivo da Colquida está também o facto de no seu espaço ser dominante o deserto, com alguns locais de cultivo a brotar ali e além, com um terreno muito acidentado, causado pela grande número de pequenos montes, nas quais se localizam habitações escavadas na rocha que se encontram umas em cima das outras. Como reforço final da ideia de barbárie deste mundo o realizador apresenta ao público um ritual sangrento dedicado à divindade da vegetação, que era necessário para a continuação das boas colheitas. O rito em questão é bastante violento, tendo sido directamente inspirado por uma tribo de Bengala, que apresentava comportamentos semelhantes no cultivo do milho maíz, caso que foi tratado no Tratado da Historia das Religiões, de Mircea Eliade.[40]
Apesar do carácter violento das imagens do ritual de sacrifício em honra do deus da vegetação na Cólquida, e da graficamente violenta morte de Apsirto, a morte das crianças não é violenta, é por envenenamento, e ocorre após uma cena caseira que apresenta os laços de afectividade mãe-filho, em actos como dar banho às crianças e adormece-las com cantigas de embalar.
O fim da peça de Eurípides termina em deus ex machina que é aqui substituído por um esforço suicida de Medeia depois da morte das crianças. A protagonista pega fogo à casa, o que leva à concentração de pessoas junto desta, entre eles Jasão. O herói grego tem uma intensa troca de palavras com Medeia, que se encontra num ponto elevado da casa com os corpos dos seus dois filhos, rodeada de labaredas, pedindo-lhe que deixe enterrar os seus filhos, pedido que é negado pela postura de Medeia e pelo cenário de destruição inevitável.[41]
Pasolini também recorre ao flashback e ao flashfoward, formas de analepse e de prolepse, respectivamente, no seu filme. As imagens que invadem a mente de Medeia depois de saber do novo casamento de Jasão são típicas do primeiro destes fenómenos, enquanto que a visão que tem da morte da princesa Glauce é um exemplo de prolepse cinematográfica.[42]
De referir também o papel da música, muito exótica, dos trajes e do uso do silencio no filme como sendo marcos fundamentais da criação de Pasolini.
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[26] Casos dos diálogos entre Medeia e Creonte e de Medeia e Jasão
[27] Um trabalho de selecção de apenas algumas partes dos diálogos.
[28] Vide. Infra, p.19, segundo paragrafo.
[29] Cf. Idem, ibidem, min. 27-29.
[30] Cf. Idem, ibidem, p.1023.
[31] Cf. Idem, ibidem, min.69-70.
[32] Vide. Infra, p.17, no terceiro paragrafo.
[33] Cf. Fransisco Salvador Ventura, ob.cit., p.1018-1019.
[34] Talvez a própria localização no terreno simbolize o desprezo que Medeia sofre com o abandono de Jasão, ou mesmo um sintoma de não integração no mundo moderno, helénico.
[35] Refiro-mo especificamente ao momento no qual as Pelíades lhe dão a vestir as roupas típicas de Iolco.
[36] Cf. Pasolini, Pier Paolo, ob cit., min.54-55.
[37] Cf. Fransisco Salvador Ventura, ob.cit., p.1019.
[38] Cf. Idem, ibidem, p.1019. Sobre mais detalhes dos locais usados aconselha-se a consulta de Fransisco Salvador Ventura, “La Medea de Pasolini (1969), Una Estética Contracultural de lo Mítico”, in Medeas : versiones de un mito desde Grecia hasta hoy, Vol. II, edicão de Aurora López e Andrés Pociña, Granada, Universidad de Granada, 2002, pp.1024-1026 e de Jon Solomon, “A Film Version Depicts Medea’s Babarous Background”, in Readings on Medea. editon by Don Nardo, San Diego, Greenhaven Press, 2001, pp.121-122.
[39] Cf. Idem, ibidem, p.1019.
[40] Cf, idem, ibidem, p.1020.
[41] A presença dos corpos dos filhos, e o diálogo entre ambos são aspectos que foram retirados a Eurípides.
[42] Cf. Idem, ibidem, p.1023.
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