Discursos da Fonte
Ao longo da narrativa dos factos e acontecimentos principais relatados a Osberto de Bawdsey pelo cruzado Raul, são proferidos três discursos por clérigos: pelo Bispo do Porto, D. Pedro Pitões, pelo Arcebispo de Braga, D. João Peculiar, e por um sacerdote cruzado desconhecido. Estes discursos são introduzidos na narrativa em pontos fulcrais e decisivos, passíveis de influenciar o desenrolar da acção. Este aspecto não torna a sua existência questionável enquanto facto, mas levanta muitas dúvidas ao modo como o seu conteúdo nós é apresentado, podendo o autor ter-se limitado a reproduzir os apontamentos dos próprios clérigos ou ter feito uma elaborada construção narrativa em discurso directo, que serviu para cativar os leitores e ouvintes, rebuscando sempre as temáticas da guerra santa e da reconquista[1].
D. Pedro Pitões
O primeiro discurso é atribuído ao Bispo do Porto, Pedro Pitões, que ficou encarregue de convencer os cruzados de se juntarem à conquista de Lisboa, aquando da sua escala na urbe portuense. O seu discurso está repleto de citações bíblicas[2] e de chamadas de atenção aos cruzados, lembrando os deveres de um bom cristão[3].
A sua arenga principia com o enaltecimento do zelo dos cruzados, seguindo-se a descrição do “castigo divino” que atingiu a Península Ibérica, com “a invasão dos mouros e moabitas” que deixaram “nela bem poucos cristãos e em poucas cidades, sob um pesadíssimo jugo de servidão”[4]. Tal é feito para gerar um sentimento de indignação junto dos cruzados, que viviam longe desta realidade, estimulando assim a sua intervenção bélica[5].
Durante o discurso, Pedro Pitões desenvolve o tema da guerra justa[6], de uma guerra como reacção à usurpação do território que outrora fora dos cristãos[7], recordando que as lutas entre cristãos enfraquecem a cristandade e são condenadas por Deus e pela Igreja[8]. Segundo este eclesiástico, as armas dos cruzados tinham e seriam levantadas contra os inimigos da fé, a mando de uma autoridade legítima, a Igreja, punindo-se os “homicidas, sacrílegos, e envenenadores”[9].
O bispo lembra que o acesso à Jerusalém celeste é obtido por boas acções, como a guerra contra o Islão[10], comparando o valor dos combates na Península à peleja na Palestina[11], o que corresponde à captação de toda a agressividade desta multidão de homens rudes num princípio benéfico para a cristandade. Á boa maneira de S. Bernardo de Claraval na sua pregação à cruzada, afirmando que a morte de um muçulmano, ou de outro inimigo da igreja, não é um homicídio mas um “malecídio”, o bispo incentiva à continuação da prática da guerra por estes homens mas com sentimento diferente[12].
Em termos práticos o que se observa até esta fase no discurso do Bispo, é um esforço para cativar mais os “francos” para a luta, descrevendo-a em moldes que estes conheciam, ou seja, a luta contra o infiel, a guerra santa[13].
Para terminar, apenas as últimas dezasseis linhas, das duzentas e vinte e duas que compõem esta exortação, é que são dedicadas à conquista da urbe em si. Este curioso facto talvez resulte da preparação da campanha militar de D. Afonso I, coordenada previamente com este contingente cruzado, através de contactos com São Bernardo, não havendo assim grandes dúvidas por parte do Bispo no auxílio dos “francos”[14].
D. João Peculiar
No início do cerco à cidade, o Arcebispo de Braga dirige o seu discurso aos principais responsáveis pela administração de Lisboa para os convencer a entregar a urbe[15]. Começa por procurar uma suposta conciliação, reivindicando uma igualdade natural na qual os povos estariam “ligados por um pacto de solidariedade humana”[16].
A ideia de que a invasão moura fora castigo divino e que os cristãos tem direito a exigir o que lhes fora espoliado, é idêntica à do discurso de Pedro Pitões. Seguindo esta última ideia, o arcebispo anuncia que “o território desta cidade” é “nosso por direito”[17], pois pertencia aos cristãos desde tempos muito longínquos, tendo sido usurpado pela força das armas no tempo do rei Recaredo[18]. Pela mesma força das armas impôs-se também a fé islâmica num tempo em que a fé cristã se estabeleceu pela palavra[19]. Seria, pois, o dever do inimigo, o único responsável pelo presente conflito, entregar a cidade aos cristãos, respeitando assim a sua posse natural, podendo permanecer na cidade e manter a sua religião, e se quisessem poderiam converter-se livremente ao cristianismo[20].
O ancião mouro que lhe responde recusa a sua proposta. Acusando os cristãos de serem ambiciosos de mais, de não ser “a necessidade das coisas” que os motiva “mas a ambição do espírito” a quem “não basta o mar nem a terra”[21]. O ancião afirma também que os cristãos trocam “o nome de vícios por virtudes[22], e de modo fatalista entrega o seu destino às mãos de Deus[23].
Em suma, o conceito definidor deste discurso é o de Reconquista. Uma ideologia formada durante os anos de guerra contra o Islão, por clérigos fugidos do sul da Península Ibérica para as terras asturianas. Esta posição justifica a luta contra o invasor muçulmano pelos reis cristãos, pelo seu estatuto de descendentes dos visigodos,[24] tendo assim direito a recuperar as antigas possessões destes que tinham sido usurpadas[25].
Sacerdote Cruzado
Aproximando-se o fim do cerco, surge mais uma vez um sermão de encorajamento aos participantes na guerra[26]. Desta vez o orador surge sem nome, isto é, apenas temos conhecimento de que se trata de um sacerdote cruzado, que se faz acompanhar do Santo Lenho do Senhor. “É um autêntico sermão de cruzada”[27], afirma Erdmann, no qual se começa por levanta a moral dos “francos”, dando-se conselhos gerais à penitência, e mencionando-se várias intervenções milagrosas de Deus[28].
Mais uma vez a noção de justiça “trespassa” um discurso neste relato. O sacerdote afirma que o dever do cruzado é praticar a justiça para não deixar a iniquidade impune[29], e que não seguir esse prepositivo faz com que estes homens “sejam semelhantes aos que ultrajaram a Cristo com bofetadas e lhe cuspiram no rosto ou lhe bateram na cabeça e lhe colocaram em cima a coroa de espinhos”[30].
O sacerdote dirige-se à sua audiência louvando o facto de terem abandonado as suas terras e entregando-se à pobreza e a esta luta limpos de pensamentos ímpios[31]. Para tal, fora necessário considerar os erros cometidos e sofrer penitencia para servir de exemplo aos outros. O arrependimento e consciência dos actos é então o caminho correcto, “pois no futuro com razão se há-de punir por obra quem agora cometer alguma falta em má consciência”[32].
O clérigo “franco” lembra ainda que Deus encontra-se do lado dos cruzados, e que a bandeira desse apoio divino é o Santo Lenho, símbolo que os acompanhará ao longo da batalha. A vitória é então uma segurança para estes guerreiros, pois eles arriscam a sua vida para ajudar o próximo[33], assegurando assim a salvação das suas almas[34].
Em suma, é um discurso que apela à prática da guerra santa, com o cruzado a ser agente da justiça divina, punindo um inimigo religioso muito repudiado, com a correcta disposição interior, conseguindo assim a salvação da sua alma.
[1] Cf. Pedro Barbosa, “Mouros e Cristãos no Relato da Conquista de Lisboa”, in Rumos e Escrita da História: Estudos em Homenagem a A. A. Marques de Almeida, Lisboa, Edições Colibri, 2006, p.697.
[2] O caso de Isaías (1:16, 55:6), Lucas (8:15), João (20:29), Mateus (19:21ss; 26:52), Marcos (7:11), Salmos (32:12, 117:23, 1249:7, 105:31) II Coríntios (9:10), Números (25:7), Génesis (22:16-18, 34:28), Actos (5:5-10, 13:8-11), Romanos (6:19), III Reis (18:40), Deuterónimo (13:6, 12:30), Levítico (26:8) e Provérbios (14:30). Também cita outras figuras de autoridade eclesiástica, como se irá constatar na leitura deste trabalho.
[3] Facto que nos faz questionar a assimilação do espírito de cruzada por parte desta turba guerreira, que pouco antes praticava a guerra entre eles.
[5] Cf. Idem, ibidem, p.69. Citando, nessa mesma página, Santo Ambrósio, quando afirma que “quem podendo, não repele a ofensa feita aos companheiros e aos irmãos incorre no mesmo pecado que aquele que a praticou”.
[6] Da guerra que é declarada por uma autoridade legítima, justificada pela defesa do território, das pessoas e de direitos, e levada acabo com justa intenção.
[7] Citado S. Isidoro de Sevilha para explicar o conceito de guerra justa como aquela que “se faz por declaração para reaver o que é nosso ou com o fim de expulsar os inimigos” (A Conquista de Lisboa aos Mouros, p.69).
[8] Cf. Idem, ibidem, p.71.
[9] Cf. Idem, ibidem, p.69.
[10] Cf. Idem, ibidem, p.71. Pedro Pitões refere o apoio divino a esta empresa, citado S. Agostinho num concelho ao conde Bonifácio, “Pegai nas armas, a oração bata nos ouvidos do Criador, pois, quando se combate, Deus fica de olhos abertos e é a parte que logo considera justo que dá a palma” (A Conquista […], p.71).
[11] Cf. Idem, ibidem, pp.67-69. Ao argumentar adapta mesmo uma passagem de S. Jerónimo na sua carta a Paulino, (58:2), afirmando que “não vos seduza a oportunidade de vos dardes pressa no caminho empreendido porque seria meritório terdes estado em Jerusalém, mas sim terdes vivido rectamente” (A Conquista […], p.69).
[12] Sem malícia, sem causar danos desnecessários ou fazer sofrer inocentes (A Conquista de Lisboa aos Mouros, pp.65-66).
[13] Os conceitos de guerra justa e de guerra santa são facilmente confundíveis, nomeadamente para estes cruzados, sendo o segunda uma evolução da primeira na qual se associa o inimigo político ao inimigo religioso.
Pela leitura do texto este clérigo aparente ser um bom conhecedor da teoria de guerra santa, tendo tido provavelmente acesso ao Decretum e a Panormia de Ivo de Chartres e ao Decretum de Graciano (Maria João Branco, “Introdução”[…], p.36).
[14] Cf. Pedro Barbosa, Conquista de Lisboa 1147: A Cidade Reconquistada aos Mouros, Lisboa, Tribuna da História, 2004, p.31.
[15] Este diálogo entre as duas partes corresponde não apenas ao seguimento da concepção agostiniana de que o conflito militar deve ser sempre a última opção, mas também à tentativa de evitar os elevados custos monetários e demográficos que a guerra acarreta.
[16] Cf. A Conquista de Lisboa aos Mouros, p.93.
[18] Cf. Idem, ibidem, p.95.
[19] Cf. Idem, ibidem, p.95.
[20] “Entregai nas nossas mãos a guarnição do vosso castelo. Cada um de vós terá as liberdades que tem tido até aqui. (...) viva cada um segundo os seus costumes, a não ser que espontaneamente queira vir aumentar a Igreja de Deus” (A Conquista de Lisboa aos Mouros, p.95).
[21] Cf. Idem, ibidem, p.97.
[22] Cf. Idem, ibidem, p.97.
[23] “Isso no entanto, será da vontade divina; enquanto Deus quis, tivemo-la nós (a cidade); quando não quiser, não a teremos” (A Conquista de Lisboa aos Mouros, p.97)
[24] Cf. Pedro Barbosa, “Mouros e Cristãos no Relato da Conquista de Lisboa”, ob.cit., p.701.
[25] Cf. Maria João Branco, “Introdução” […], p.37.
[26] À semelhança do discurso de Pedro Pitões as citações bíblicas são abundantes [Romanos (13:7, 8:35ss, 9:3), São Mateus (26:67, 27:29-30, 3:8), São Marcos (14:65, 15: 17-19), Malaquias (1:7-8), I Coríntios (3:19, 9:23), Sabedoria (1:4), Colossenses (3:1-2), Salmos (24:7, 61:11, 36:3-4, 112:7, 77:70), I Tessalonicenses (1:13)].
[27] Cf. Carl Erdmann, A Ideia de Cruzada em Portugal, Coimbra, Publicações do Instituto Alemão da Universidade de Coimbra, 1940, pp.23-24.
[28] Cf. Idem, idibem, p.24.
[29] Cf. A Conquista de Lisboa aos Mouros, p.119.
[30] Cf. Idem, ibidem, p.119.
[31] Cf. Idem, ibidem, p.121.
[32] Cf. Idem, ibidem, p.123.
[33] “(…) já que aceita ser anátema por Cristo, contando que os outros se salvem.” (Cf. A Conquista de Lisboa, p.125).
[34] “Viver aqui, pois, é motivo de glória e morrer é um ganho” (Cf. A Conquista de Lisboa, p.125).
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